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RESENHA DA SEMANA
O riso fora do lugar
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Em 1967, durante uma viagem de trem a
Hanover, o austríaco Peter
Handke começou a ler impressionado "Perturbação", o segundo romance
de seu conterrâneo Thomas
Bernhard (1931-1989), que acabava de sair na Alemanha e cuja tradução é agora publicada
no Brasil, com mais de 30 anos
de atraso.
Handke não conseguia largar
o livro, que conta as visitas de
um médico rural acompanhado pelo filho (o narrador) a pacientes espalhados por "um
distrito relativamente extenso
e, além disso, difícil", um lugar
sinistro em que "abrir um consultório beirava a insanidade",
uma região por onde vaga um
assassino e cujas casas abrigam
todo tipo de moribundos cercados de pessoas e animais perturbados.
A perturbação chega ao ápice
com a subida ao castelo Hochgobernitz, de onde o príncipe
Saurau, um homem atormentado pelos ruídos que ouve,
tem "a melhor vista panorâmica de toda a região", a vista da
sua própria loucura.
"Todos os seres vivos pareciam estar totalmente dependentes de seus sistemas nervosos", escreveu Handke sobre
aquela noite em que, sob o efeito de "Perturbação" e não encontrando ninguém na casa
onde ficaria hospedado, acabou sozinho, num banco de
uma praça próxima à Ópera de
Hanover, sem poder interromper a leitura.
O encanto que o livro exerce
sobre o leitor é o avesso da perturbação que atinge seus personagens e os leva à loucura
por uma exasperação da razão.
Não se trata de ironia. O texto
de Bernhard desrealiza, pelo
humor, a realidade dos acontecimentos mais deprimentes e
doentios, fazendo o riso despontar incontrolável, fora do
lugar, como reação às descrições mais tenebrosas.
O suicídio, por exemplo, está
presente em quase todos os livros do escritor. "Quando descrevo esse gênero de situações
centrífugas encaminhadas na
direção do suicídio, trata-se da
descrição de estados em que eu
próprio me encontro e onde,
por outro lado, talvez me sinta
bem enquanto escrevo, justamente porque não me suicidei,
porque escapei disso", declarou o autor na sua última entrevista à televisão austríaca,
meses antes de morrer, não pelas próprias mãos, como se poderia supor com base numa má
interpretação da obra, mas de
um ataque do coração.
O niilismo de Bernhard desenvolve paradoxos capazes de
representar as trevas pela força
estimulante de uma gargalhada. Na pequena obra-prima
"Sim" (1978), o suicídio passa a
ser, por uma estranha inversão
literária, a afirmação contundente de uma feliz e surpreendente reviravolta do texto. E a
própria loucura do príncipe
Saurau, em "Perturbação", é
expressa pela mais perfeita lógica de seu monólogo. "Sempre que falamos de suicídio,
pomos em movimento algo cômico", diz o príncipe.
E não é à toa que essa loucura
seja indissociável da lógica que,
pela repetição obsessiva, torna-se absurda, nem que a figura de
Wittgenstein tenha uma influência tão visível na linguagem de Bernhard, a começar
pelos romances "O Sobrinho
de Wittgenstein" e "Correções".
O efeito que esses textos exercem sobre o leitor nunca é de
tristeza, mas de uma perplexidade esfuziante diante de tamanha potência criadora brotando paradoxalmente das situações mais aterradoras e do
mais profundo mal-estar. A literatura de Bernhard é um dos
exemplos mais felizes, complexos e radicais do poder transformador da arte.
Curiosamente também não
há nesse riso nenhum cinismo
em relação ao sofrimento humano, mas antes uma espécie
de solidariedade revoltada,
uma consciência aguda, como
a dos loucos, de um narrador
que prefere reagir com ódio e
escárnio ao horror que vê à sua
volta, em surtos compulsivos
da linguagem, a ter de sucumbir ao desespero.
Bernhard fez desse ódio a sua
marca registrada contra a hipocrisia, o anti-semitismo e a máfia não só dos políticos, mas do
meio literário e artístico de seu
país. Sua irritação, destilada de
uma forma particularmente incisiva em "Árvores Abatidas" e
na peça "Heldenplatz", que
causou escândalo em 1988, acabou por lhe valer a pecha de
misantropo quando, para além
da caricatura e do clichê, ele foi
sem a menor dúvida um dos
maiores gênios da literatura do
século.
""O ridículo nos homens, caro doutor", disse o príncipe, "é
realmente sua total incapacidade de serem ridículos. Ainda
não vi nenhum homem ridículo, embora na maioria dos homens que vejo tudo seja ridículo"."
Os narradores dos livros de
Thomas Bernhard, assim como o próprio autor, têm, ao
contrário, a capacidade de serem ridículos, nem que seja só
pela afirmação obsessiva de
sua loucura, o que os torna assustadoramente humanos. E
cômicos.
Livro: Perturbação
Autor: Thomas Bernhard
Tradução: Hans Peter Welper e José
Laurenio de Melo
Editora: Rocco
Quanto: R$ 32,50 (248 págs.)
Avaliação:
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