São Paulo, Sábado, 09 de Outubro de 1999
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RESENHA DA SEMANA

O riso fora do lugar


BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Em 1967, durante uma viagem de trem a Hanover, o austríaco Peter Handke começou a ler impressionado "Perturbação", o segundo romance de seu conterrâneo Thomas Bernhard (1931-1989), que acabava de sair na Alemanha e cuja tradução é agora publicada no Brasil, com mais de 30 anos de atraso.
Handke não conseguia largar o livro, que conta as visitas de um médico rural acompanhado pelo filho (o narrador) a pacientes espalhados por "um distrito relativamente extenso e, além disso, difícil", um lugar sinistro em que "abrir um consultório beirava a insanidade", uma região por onde vaga um assassino e cujas casas abrigam todo tipo de moribundos cercados de pessoas e animais perturbados.
A perturbação chega ao ápice com a subida ao castelo Hochgobernitz, de onde o príncipe Saurau, um homem atormentado pelos ruídos que ouve, tem "a melhor vista panorâmica de toda a região", a vista da sua própria loucura.
"Todos os seres vivos pareciam estar totalmente dependentes de seus sistemas nervosos", escreveu Handke sobre aquela noite em que, sob o efeito de "Perturbação" e não encontrando ninguém na casa onde ficaria hospedado, acabou sozinho, num banco de uma praça próxima à Ópera de Hanover, sem poder interromper a leitura.
O encanto que o livro exerce sobre o leitor é o avesso da perturbação que atinge seus personagens e os leva à loucura por uma exasperação da razão. Não se trata de ironia. O texto de Bernhard desrealiza, pelo humor, a realidade dos acontecimentos mais deprimentes e doentios, fazendo o riso despontar incontrolável, fora do lugar, como reação às descrições mais tenebrosas.
O suicídio, por exemplo, está presente em quase todos os livros do escritor. "Quando descrevo esse gênero de situações centrífugas encaminhadas na direção do suicídio, trata-se da descrição de estados em que eu próprio me encontro e onde, por outro lado, talvez me sinta bem enquanto escrevo, justamente porque não me suicidei, porque escapei disso", declarou o autor na sua última entrevista à televisão austríaca, meses antes de morrer, não pelas próprias mãos, como se poderia supor com base numa má interpretação da obra, mas de um ataque do coração.
O niilismo de Bernhard desenvolve paradoxos capazes de representar as trevas pela força estimulante de uma gargalhada. Na pequena obra-prima "Sim" (1978), o suicídio passa a ser, por uma estranha inversão literária, a afirmação contundente de uma feliz e surpreendente reviravolta do texto. E a própria loucura do príncipe Saurau, em "Perturbação", é expressa pela mais perfeita lógica de seu monólogo. "Sempre que falamos de suicídio, pomos em movimento algo cômico", diz o príncipe.
E não é à toa que essa loucura seja indissociável da lógica que, pela repetição obsessiva, torna-se absurda, nem que a figura de Wittgenstein tenha uma influência tão visível na linguagem de Bernhard, a começar pelos romances "O Sobrinho de Wittgenstein" e "Correções".
O efeito que esses textos exercem sobre o leitor nunca é de tristeza, mas de uma perplexidade esfuziante diante de tamanha potência criadora brotando paradoxalmente das situações mais aterradoras e do mais profundo mal-estar. A literatura de Bernhard é um dos exemplos mais felizes, complexos e radicais do poder transformador da arte.
Curiosamente também não há nesse riso nenhum cinismo em relação ao sofrimento humano, mas antes uma espécie de solidariedade revoltada, uma consciência aguda, como a dos loucos, de um narrador que prefere reagir com ódio e escárnio ao horror que vê à sua volta, em surtos compulsivos da linguagem, a ter de sucumbir ao desespero.
Bernhard fez desse ódio a sua marca registrada contra a hipocrisia, o anti-semitismo e a máfia não só dos políticos, mas do meio literário e artístico de seu país. Sua irritação, destilada de uma forma particularmente incisiva em "Árvores Abatidas" e na peça "Heldenplatz", que causou escândalo em 1988, acabou por lhe valer a pecha de misantropo quando, para além da caricatura e do clichê, ele foi sem a menor dúvida um dos maiores gênios da literatura do século.
""O ridículo nos homens, caro doutor", disse o príncipe, "é realmente sua total incapacidade de serem ridículos. Ainda não vi nenhum homem ridículo, embora na maioria dos homens que vejo tudo seja ridículo"."
Os narradores dos livros de Thomas Bernhard, assim como o próprio autor, têm, ao contrário, a capacidade de serem ridículos, nem que seja só pela afirmação obsessiva de sua loucura, o que os torna assustadoramente humanos. E cômicos.


Livro: Perturbação
Autor: Thomas Bernhard
Tradução: Hans Peter Welper e José Laurenio de Melo
Editora: Rocco
Quanto: R$ 32,50 (248 págs.)

Avaliação:     


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