São Paulo, terça-feira, 09 de outubro de 2001

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LITERATURA

Riso e pranto pelejam em oratórias

REYNALDO JARDIM
ESPECIAL PARA A FOLHA

A um autêntico, competente e erudito ensaio que abre "As Lágrimas de Heráclito", do padre Antonio Vieira, a mestra Sonia Netto Salomão intitula, modestamente, de introdução. São 90 páginas em que são analisados e historiados os cenários e bastidores da peleja entre Vieira e Girolamo Cattaneo, esgrimistas ladinos e cheios de manhas dialéticas.
As razões que levaram a editora a não informar na capa do volume que, além da oração de Vieira, está presente o trabalho de Cattaneo são enigmáticas. Também não custava nada ter um texto, mesmo que breve, sobre Heráclito e Demócrito, para mostrar que nem o primeiro era simplesmente um bebê chorão nem o segundo era um pândego gaiato.
A proposição da Academia Real de Roma demonstra que a sereníssima Cristina, rainha da Suécia em Roma, a nobreza, os clérigos e os acadêmicos estavam a fim era de uma erudita demonstração de oratória: "O que seria mais razoável, se o riso de Demócrito, que de tudo zombava, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava".
Qualquer que fosse o mote entregue a Vieira, ele o glosaria com argúcia e astúcia, já demonstradas em palestras e sermões de assuntos mais complexos e instigantes.
Esse "razoável" da proposição é descabido, como são descabidos os "tudos" com que se reduz a importância de ambos pensadores. Circo armado, para deleite de uma platéia ociosa, Vieira e Cattaneo dão o esperado show de malabarismo retórico. E sob aplausos retiram-se do picadeiro.
Sonia Netto Salomão demonstrou, mais uma vez, sua reconhecida autoridade. Pena que nos dê de presente uma peça de Vieira que nada acrescenta à sua obra magnífica e indispensável.
Em todo caso, qualquer que seja o texto de Vieira, é proveitoso participar de sua aventura linguística, virtuosa e bela. Devemos sempre agradecer o famoso estalo que o transformou em um gênio.
A erudita introdução nos remete ao Santo Ofício, com seu processo inquisitorial, e nos leva à reflexão sobre a perniciosidade que o fanatismo religioso vem causando à humanidade.
Os fundamentalistas de hoje repetem a ação da igreja no mesmo caráter cruel e intransigente dos tempos de Vieira, que, condenado por heresia judaizante, penou nas masmorras de Coimbra, de onde saiu proibido de abrir o bico no púlpito. A ação que o Taleban desempenha agora contra os judeus, bisando o nazismo, não difere da caça do Santo Ofício.
Vieira foi um incansável trabalhador intelectual, escrevendo até os últimos dias de sua vida, quando já estava surdo, cego e com a mão direita paralisada.


Reynaldo Jardim é poeta e jornalista

As Lágrimas de Heráclito
    
Autor: padre Antonio Vieira
Fixação: Sonia Netto Salomão
Lançamento: 34
Quanto: R$ 25 (208 págs.)



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