São Paulo, quarta-feira, 09 de outubro de 2002

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MARCELO COELHO

A insustentável leveza de FHC

Em janeiro deste ano, Nizan Guanaes declarava à revista "República" que o PT era "taleban total". E continuava: "O PT é contra a alegria, é contra soltar pipa. Só faltam os turbantes, a barba já tem. Eles vão ficar naquela coisa triste, o mundo é triste, o Brasil é uma tristeza. O Duda vai vir de gás lacrimejante, e eu vou vir com aquele gás do riso".
Duda Mendonça já era o marqueteiro de Lula naquele momento. Nizan ainda estava com Roseana Sarney -aliou-se depois a Nelson Biondi na campanha de José Serra.
Hoje é irônico, sem dúvida, pensar na candidatura de Lula como a apologia da tristeza e na de José Serra como a da alegria e do gás do riso. Mas apontar a frase infeliz de Nizan Guanaes, a esta altura, não tem graça nenhuma. O que me espanta é a rapidez com que o país abandonou o simplismo ideológico ao longo da campanha eleitoral.
Aquelas clássicas perguntas nos debates, do tipo "o senhor sabe qual é o preço de um pãozinho?" ou "o senhor acredita em Deus?" ou ainda "qual será o seu primeiro ato ao assumir o governo?", parecem hoje incrivelmente provincianas e atrasadas.
Verdade que, no último debate, José Serra tentou reeditar coisas desse tipo, perguntando a Lula qual o preço da passagem de ônibus em São Paulo. Verdade também que a resposta de Lula foi risível -entre muitas tergiversações, o candidato do PT acabou lembrando que mora em São Bernardo.
Pormenores. O fato é que mensagens messiânicas e frases demagógicas não foram o forte desta campanha e que as tentativas de baixaria foram, até agora (não sei no segundo turno), muito mal recebidas.
Percebeu-se, mais ou menos rapidamente, que algumas atitudes não colam mais. O recurso à fraseologia anticomunista, por exemplo. Um jingle de Serra falava algo como "eu sou azul, o Lula é vermelho", mas sua eficácia e abrangência na opinião pública se mostraram residuais.
Além do anticomunismo, também caíram no vazio as tentativas de agitar o fantasma da "argentinização", do caos econômico na eventualidade de uma vitória de Lula. Fernando Henrique e sua equipe econômica tiveram rapidamente de desistir desse recurso na campanha, pois talvez o perigo profetizado se tornasse real antes do tempo.
Em resumo, não foi possível demonizar o PT nem usar de recursos "politicamente incorretos" para atacar Lula, muito menos fazer uso da manipulação telejornalística pura e simples.
Simetricamente, Fernando Henrique foi muito preservado nesta campanha. Os resultados da eleição foram fortemente desfavoráveis ao governo -muito mais do que o discurso dos candidatos estava a indicar.
Enquanto o maniqueísmo aumentou muito no plano internacional, com a simploriedade ameaçadora de Bush, aqui se deu o fenômeno inverso. Será que ficamos tão civilizados assim? O segundo turno das eleições presidenciais trará a resposta. Faço quatro observações pontuais.
O candidato mais demonizado, mais estigmatizado pelas frases infelizes que pronunciou, foi Ciro Gomes; foi também quem teve o discurso mais politizado e mais crítico contra Fernando Henrique.
Os "outsiders" do sistema político, as figuras menos inteligíveis para a elite (e talvez as de imaginário mais ameaçador), não se localizaram na esquerda do espectro político. Muitos candidatos evangélicos e também o Prona do dr. Enéas é que se constituíram nas forças que o nosso vocabulário ideológico tem menos condições de absorver.
Apesar de ser o candidato do PSDB, Serra -com sua tenacidade, sua avidez pelo poder- é que parecia o representante dos "excluídos"; talvez ele próprio se veja assim, dada a pouca influência que teve nos rumos da política econômica cardosiana.
E a felicidade de Lula -com sua bonomia, seus ternos, charutos e vinhos- foi apresentada como sintoma de um processo de "inclusão social".
O que esses quatro pontos têm em comum? Terminam contando a favor de Fernando Henrique. Em seus embates com a oposição, o presidente sempre insistiu na tese da "complexidade", na "ética da responsabilidade", na idéia de que passou o tempo das contraposições ideológicas rígidas. Esse discurso (que deu o tom abertamente conservador do governo FHC) foi absorvido e apreendido na prática pelo PT.
Votou-se contra o governo, mas sem que Fernando Henrique fosse contestado. Nos últimos quatro anos, o presidente pairou confortavelmente acima do seu próprio governo; quanto mais o país afunda, mais se experimenta a insustentável leveza de FHC.
Não querendo se identificar com um governo fraco, Serra foi ambíguo durante a campanha. O resultado é que Fernando Henrique acabou livre de se ver identificado com a baixa votação de Serra.
E até se pode dizer que FHC finalmente se livrou do famoso episódio de 1985, quando engasgou na pergunta sobre se acreditava em Deus. Conseguiu tornar tão carolas os seus adversários -e também tão carolas os seus aliados- que é quase como se tivesse se declarado ateu de uma vez por todas.
Falta de demagogia mas também falta de projeto; um certo cinismo difuso e afável, que se confunde com a crítica ao maniqueísmo; um certo senso de responsabilidade, que não exclui a idéia de lavar as mãos diante do fato consumado -tudo isso faz parte do legado de Fernando Henrique e impôs a sua marca também sobre o marketing eleitoral neste primeiro turno. Veremos se persiste a partir de agora.


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