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MARCELO COELHO
A insustentável leveza de FHC
Em janeiro deste ano, Nizan Guanaes declarava à revista "República" que o PT era
"taleban total". E continuava: "O
PT é contra a alegria, é contra soltar pipa. Só faltam os turbantes, a
barba já tem. Eles vão ficar naquela coisa triste, o mundo é triste, o Brasil é uma tristeza. O Duda
vai vir de gás lacrimejante, e eu
vou vir com aquele gás do riso".
Duda Mendonça já era o marqueteiro de Lula naquele momento. Nizan ainda estava com
Roseana Sarney -aliou-se depois a Nelson Biondi na campanha de José Serra.
Hoje é irônico, sem dúvida, pensar na candidatura de Lula como
a apologia da tristeza e na de José
Serra como a da alegria e do gás
do riso. Mas apontar a frase infeliz de Nizan Guanaes, a esta altura, não tem graça nenhuma. O
que me espanta é a rapidez com
que o país abandonou o simplismo ideológico ao longo da campanha eleitoral.
Aquelas clássicas perguntas nos
debates, do tipo "o senhor sabe
qual é o preço de um pãozinho?"
ou "o senhor acredita em Deus?"
ou ainda "qual será o seu primeiro ato ao assumir o governo?",
parecem hoje incrivelmente provincianas e atrasadas.
Verdade que, no último debate,
José Serra tentou reeditar coisas
desse tipo, perguntando a Lula
qual o preço da passagem de ônibus em São Paulo. Verdade também que a resposta de Lula foi risível -entre muitas tergiversações, o candidato do PT acabou
lembrando que mora em São Bernardo.
Pormenores. O fato é que mensagens messiânicas e frases demagógicas não foram o forte desta
campanha e que as tentativas de
baixaria foram, até agora (não
sei no segundo turno), muito mal
recebidas.
Percebeu-se, mais ou menos rapidamente, que algumas atitudes
não colam mais. O recurso à fraseologia anticomunista, por
exemplo. Um jingle de Serra falava algo como "eu sou azul, o Lula
é vermelho", mas sua eficácia e
abrangência na opinião pública
se mostraram residuais.
Além do anticomunismo, também caíram no vazio as tentativas de agitar o fantasma da "argentinização", do caos econômico
na eventualidade de uma vitória
de Lula. Fernando Henrique e
sua equipe econômica tiveram
rapidamente de desistir desse recurso na campanha, pois talvez o
perigo profetizado se tornasse real
antes do tempo.
Em resumo, não foi possível demonizar o PT nem usar de recursos "politicamente incorretos" para atacar Lula, muito menos fazer uso da manipulação telejornalística pura e simples.
Simetricamente, Fernando
Henrique foi muito preservado
nesta campanha. Os resultados
da eleição foram fortemente desfavoráveis ao governo -muito
mais do que o discurso dos candidatos estava a indicar.
Enquanto o maniqueísmo aumentou muito no plano internacional, com a simploriedade
ameaçadora de Bush, aqui se deu
o fenômeno inverso. Será que ficamos tão civilizados assim? O segundo turno das eleições presidenciais trará a resposta. Faço
quatro observações pontuais.
O candidato mais demonizado,
mais estigmatizado pelas frases
infelizes que pronunciou, foi Ciro
Gomes; foi também quem teve o
discurso mais politizado e mais
crítico contra Fernando Henrique.
Os "outsiders" do sistema político, as figuras menos inteligíveis
para a elite (e talvez as de imaginário mais ameaçador), não se
localizaram na esquerda do espectro político. Muitos candidatos evangélicos e também o Prona
do dr. Enéas é que se constituíram
nas forças que o nosso vocabulário ideológico tem menos condições de absorver.
Apesar de ser o candidato do
PSDB, Serra -com sua tenacidade, sua avidez pelo poder- é que
parecia o representante dos "excluídos"; talvez ele próprio se veja
assim, dada a pouca influência
que teve nos rumos da política
econômica cardosiana.
E a felicidade de Lula -com
sua bonomia, seus ternos, charutos e vinhos- foi apresentada como sintoma de um processo de
"inclusão social".
O que esses quatro pontos têm
em comum? Terminam contando
a favor de Fernando Henrique.
Em seus embates com a oposição,
o presidente sempre insistiu na tese da "complexidade", na "ética
da responsabilidade", na idéia de
que passou o tempo das contraposições ideológicas rígidas. Esse
discurso (que deu o tom abertamente conservador do governo
FHC) foi absorvido e apreendido
na prática pelo PT.
Votou-se contra o governo, mas
sem que Fernando Henrique fosse
contestado. Nos últimos quatro
anos, o presidente pairou confortavelmente acima do seu próprio
governo; quanto mais o país
afunda, mais se experimenta a
insustentável leveza de FHC.
Não querendo se identificar
com um governo fraco, Serra foi
ambíguo durante a campanha. O
resultado é que Fernando Henrique acabou livre de se ver identificado com a baixa votação de Serra.
E até se pode dizer que FHC finalmente se livrou do famoso episódio de 1985, quando engasgou
na pergunta sobre se acreditava
em Deus. Conseguiu tornar tão
carolas os seus adversários -e
também tão carolas os seus aliados- que é quase como se tivesse
se declarado ateu de uma vez por
todas.
Falta de demagogia mas também falta de projeto; um certo cinismo difuso e afável, que se confunde com a crítica ao maniqueísmo; um certo senso de responsabilidade, que não exclui a
idéia de lavar as mãos diante do
fato consumado -tudo isso faz
parte do legado de Fernando
Henrique e impôs a sua marca
também sobre o marketing eleitoral neste primeiro turno. Veremos
se persiste a partir de agora.
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