São Paulo, sábado, 09 de outubro de 2004

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FERNANDO GABEIRA

Avedon, um mestre do século 20

Dois mestres do século 20 desaparecem num curto espaço de tempo: Henri Cartier-Bresson e Richard Avedon. Este último foi também um fotógrafo de moda e, como a moda teve um grande papel no capitalismo moderno, muitas lembranças se concentraram no tema.
No entanto Richard Avedon foi um grande mestre do retrato, enriquecendo a tradição norte-americana do gênero. Suas fotos falavam alguma coisa sobre o modelo e, na verdade, falavam alguma coisa em convergência com o modelo. O retrato de Chaplin erguendo os dedos sobre a cabeça, como se fosse o Diabo, era uma clara mensagem às autoridades americanas sobre a intolerância com que tratavam o gênio do cinema.
Talvez seja por essa nova relação com o retrato, marcando um papel do olhar do fotógrafo, que Henry Kissinger tenha dito para Avedon no momento em que fitava a lente: "Tenha piedade de mim".
Alguns fotógrafos americanos foram também grandes intérpretes do país. Walker Evans, por exemplo, pago pelo governo, viajou pelo interior fotografando gente pobre na dignidade de sua luta pela sobrevivência. Evans viajava com um dos mais fulgurantes talentos da literatura americana, James Agee, e os dois juntos fizeram um livro histórico para elogiar o homem comum.
Naquele momento de depressão, era importante levantar o astral. Richard Avedon percorreu 17 Estados fotografando seu país. O resultado de seu trabalho foi considerado pessimista. Mas a América já se sentia o país mais bem-sucedido do mundo. Não se tratava de levantar o astral, mas de trazer uma ponta de realidade para o sonho americano.
Talvez mais pessimista que Evans, Avedon, que estudou com o lendário diretor de artes Alexey Brodovitch, fez um longo trabalho sobre manicômios, relacionando-os com o Vietnã, pois, na sua opinião, a guerra era uma espécie de continuidade da loucura americana. Também mergulhou na agonia de seu pai, Jacob Israel Avedon. Saiu dali com uma série que não apenas registrava a decadência gradual de uma forte personalidade mas resgatava para ele as lembranças dos gestos e expressões de um ente querido.
Por toda a sua contribuição às revistas de moda e a influência que exerceu sobre a nova geração, é razoável que Richard Avedon seja associado ao tema. A idéia de tirar os modelos dos estúdios foi uma ruptura, consagrada com a foto da modelo Davima entre os elefantes, tirada no Circo de Inverno de Paris, em 1955.
Mas sua passagem pela Europa foi marcada por uma série de ensaios com meninos de rua da Itália. O trabalho chegou a ser exposto, assim como o que fez sobre os loucos no Lousiana State Hospital e depois com as vítimas do napalm no Vietnã.
Ele só não avançou nessa trilha por uma definição filosófica: achava que as fotos de violência contribuíam para aumentar a violência.
O último retrato feito por Avedon foi publicado na semana passada pela revista "New Yorker". O modelo é Teresa Heinz Kerry, mulher do candidato à Presidência. Muitos, com o sucesso das fotos de exterior, pensam que Avedon continuou nessa trilha.
A sensação que tenho é que optou por um fundo branco para ressaltar a pureza dos movimentos de seus modelos. Ele mesmo, num certo momento, desabafou: "Como perseguir a luz natural, se vivemos entre Hiltons, aeroportos e coquetéis?". Para ele, a luz natural era como a infância, uma bela lembrança.
A conclusão a que chego é que os grandes fotógrafos de moda são, nos EUA, grandes fotógrafos em quase todas as áreas. Está aí, com 87 anos, Irving Penn, que também começou na "Vogue" e construiu uma obra de importância mundial.
A fotografia é um momento de esplendor da cultura norte-americana. Avedon, um mestre do século 20, teve em quem se inspirar, se pensamos em Paul Strand e Walker Evans, para falar apenas de dois.
Num nível mais modesto do que americana e talvez a mexicana, a fotografia brasileira deu inúmeros passos. Temos, entre outros, um mestre em preto-e-branco, Sebastião Salgado, e um mestre em cores, Miguel Rio Branco.
Um obstáculo para o progresso fomos nós, editores de jornais e revistas, nas décadas anteriores. Com uma cultura tipicamente literária, sempre entendemos a foto como uma ilustração; éramos adversários da autonomia da imagem.
Outro obstáculo é a dificuldade de reconhecer a fotografia como uma atividade cultural. Faz tempo que insisto com amigos cearenses para fazerem uma espécie de museu da fotografia do Ceará. Eles gostam dos fotógrafos, tanto que deram a uma avenida o nome de Luciano Carneiro. Mas ainda não cultivam a foto como um trunfo da cultura local. Isso tudo pode mudar: a editora Cosac & Naify, por exemplo, está lançando um livro sobre a história da fotografia moderna no Brasil.
Truman Capote dizia que Avedon tinha o dom do olhar. Cartier-Bresson também o tinha. Num momento em que a fotografia vive a revolução digital e milhões de pessoas no mundo se dedicam a ela, fica sempre uma interrogação no ar. Esse fenômeno vai estimular ou inibir a aparição de grandes mestres? Já temos as câmeras onde tudo pode ser feito automaticamente. Ficam faltando apenas o talento e a cultura plástica dos grandes artistas, que, aos poucos, deixam a cena.
Que o novo século tenha algo como os anos 60 do século 20 e alguém para eternizá-lo como Richard Avedon.


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