São Paulo, sexta-feira, 09 de novembro de 2001

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CINEMA/ESTRÉIA

Com o longa "Caramuru", diretor tenta repetir sucesso de "O Auto da Compadecida"

E Guel criou um Brasil

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Rigor histórico certamente não foi a maior preocupação de Guel Arraes, 47, ao transpor a série "A Invenção do Brasil", exibida pela Globo no ano passado, para a tela grande, em "Caramuru".
Guel já inventara um Brasil bem particular no programa, que homenageava os 500 anos do país, com tupinambás vestindo minitrajes feitos de coco e plumas e falando uma língua que remontava ao modernista Mário de Andrade.
O programa usava a história de Diogo Álvares -e de como o português se tornaria Caramuru após seu enleio com as irmãs índias Paraguaçu e Moema- como mote para trechos documentais, introduzidos por Marco Nanini.
Na passagem, o diretor manteve a parceria com Jorge Furtado ("Ilha das Flores", 89) no roteiro.
Desde o começo, explica Guel à Folha, a caminho da pré-estréia paulistana de "Caramuru", a dupla já queria fazer a atração televisiva trilhar o mesmo caminho de "O Auto da Compadecida" -que, saindo da TV, virou sucesso de bilheteria, com 2,161 milhões de espectadores.
O sucesso da empreitada anterior, diz Guel, não abriu um caminho natural para "Caramuru". Mas, por outro lado, repetir a trilha reforça a imagem do diretor como um "paladino" na tentativa de provar que, se não são irmãs gêmeas, telinha e telona têm "uma fronteira comum".
"Levar os dois trabalhos da TV para o cinema, para mim, é quase para mostrar que não é o fato de fazer cinema que muda. Eu não faria o "Auto" diferente se fosse primeiro para cinema. Eu sei fazer assim. Esse gesto é meio para provar: já era um filme, vocês não estavam prestando atenção."
Mas faz uma ressalva: o descompromisso com que se vê TV acaba atrapalhando a percepção que ele defende.
"A maneira de olhar é diferente. Depois do "Auto", pessoas que gostaram muito, espantadas com aquilo, vinham comentar. Eu dizia: "Mas não é inédito, passou na televisão, não viu?'; elas diziam: "Vi, mas não é a mesma coisa". E é a mesma coisa. O envolvimento do espectador muda a esse ponto. Eu ficava revoltado. A maneira de ver muda e muda quase a obra."
Se em "Auto", porém, foi feita somente uma nova edição para o material televisivo, "Caramuru" exigiu toda uma reelaboração. Numa primeira concepção do diretor, o narrador (Nanini) interromperia o filme com comentários sobre a história dos personagens. Mas, ainda que Guel defenda a semelhança entre os meios, a diferença se impôs.
"O que aconteceu um pouco é que aquilo ficava parecendo televisão." Justamente, explica, porque o público televisivo está habituado a ser interrompido -por um repórter, pelos comerciais-, o que não acontece no cinema.
Limar do filme o caráter "didático", deixando só a comédia romântica transcultural, distanciou o programa da idéia de "produção de época".
"Quando você faz uma história de época, tem de trazer um pouco da informação, mas, ao mesmo tempo, trazer o que continua a interessar hoje, porque senão é fazer um negócio morto. Toda história de época é uma história da nossa época", acredita.
No caso, a intenção foi "dar um frescor diferente a uma discussão ainda nova": achar de onde vem, senão a espontaneidade sexual brasileira, "pelo menos a fantasia" que a difunde.
Tirar a parte documental corresponde ainda a outra preocupação: garantir-se quanto ao público. "Não é todo ano que a gente faz 500 anos. Tinha uma emoção que justificava que o povo quisesse prestar atenção àquilo. Mas assim, batidão, no cinema, fora de época, seria arriscar demais."
A frase denota a atitude pragmática do diretor, que não se qualifica como cineasta. Não faria cinema -só cinema, sem TV antes? "Acho que sim. Mas gostaria que passasse na TV." Não gostaria de fazer algo "experimental", "para um público amante do cinema". "Como até agora me interesso mais por essa faixa que é em cima do muro, quero fazer um filme que seja popular. Essa pergunta é constante, mas para mim não faz muito sentido."
E encoraja seus colegas a seguirem seu exemplo. "Acho que, no Brasil, essa relação [TV-cinema" precisa achar um jeito diferente de se estabelecer, que não é o mesmo da França, da Itália, onde o cinema preexiste e tem um prestígio cultural enorme. Brasileiro adora a televisão brasileira."
Seu jeitinho -ou "volta", como diz- seria, então, o modo melhor de fazer com que a TV no Brasil possa funcionar como fomento para o cinema?
"Acho que é pelo menos mais uma maneira. Boa parte dos novos diretores de cinema já fizeram TV, fazem comercial. Eles já fizeram ou estão muito próximos de fazer trabalhos de duplo uso. Como fiz da televisão para o cinema, eles podem fazer do cinema para a televisão."
E completa: "A batalha política tem de existir, ela existe. Mas eu não vou ficar a minha vida esperando uma lei pela qual a TV vá dar dinheiro para eu poder fazer cinema".



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