São Paulo, sábado, 09 de dezembro de 2006

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DRAUZIO VARELLA

A genética da dor

A resistência à dor tem sido atribuída a valores psicológicos, mas a genética contesta isso

AQUI, AS mulheres gritam. Não se assustem, quase sempre é alarme falso. Mas quando uma japonesa gemer, corram, senão nasce na cama.
A recomendação era feita com ar grave pelo obstetra-chefe dos movimentados plantões das quintas-feiras, no Hospital Pérola Byington, nos meus tempos de estudante. Na experiência dele, não eram poucas as mulheres latinas que já começavam o escândalo às primeiras dores do parto, enquanto as orientais suportavam-nas com estoicismo até o período expulsivo.
Tradicionalmente, a resistência à dor tem sido atribuída exclusivamente a valores psicológicos e sócio-culturais, mas a genética moderna começa a contestar esse dogma: haveria genes que predispõem seus portadores a desenvolver quadros de dores crônicas?
O estudo das chamadas dores em membros fantasmas lançou as bases para esclarecer o papel dos genes na resistência à dor.
Dores fantasmas são referidas com freqüência em membros amputados. Os pacientes as descrevem como sensação de ardência, queimação, formigamento e ferroadas nas diversas partes do membro que não existe mais. No passado, a explicação mais aceita para essa extravagância biológica vinha da psicologia: amputados assintomáticos seriam pessoas dotadas da capacidade de aceitar a perda do membro, enquanto as outras passariam o resto da vida revoltadas com a ausência dele.
Em 1990, um experimento realizado em ratos sugeriu, pela primeira vez, que a sensibilidade à dor tivesse um componente genético. Marshall Devor, da Universidade Hebraica, de Jerusalém, estudando ratos que tiveram traumatismos em nervos das pernas, verificou que alguns animais reagiam mais intensamente, esfregando a pata e levando a boca ao local traumatizado, enquanto outros davam menos demonstração de sentir dor. E o mais interessante: os filhotes desses animais, quando submetidos a estímulos dolorosos, tendiam a apresentar reações semelhantes às dos pais.
Pesquisas posteriores permitiram a publicação na revista "Nature Medicine" de uma pequena lista de genes recém-descobertos provavelmente envolvidos no mecanismo da dor.
Mitchell Max e colaboradores, nos Estados Unidos, acompanharam durante dois anos um grupo de 147 pessoas submetidas a cirurgia na coluna para aliviar dores nas pernas provocadas por hérnias de disco. A cada três meses, os participantes respondiam a um questionário em que avaliavam o nível de dor que sentiam. Paralelamente, três genes associados aos mecanismos da dor eram seqüenciados em cada participante, para estudar possíveis relações entre as características genéticas e a intensidade da dor referida.
Dos três genes, um (GCH1) mostrou relação nítida com os níveis de dor. Os pacientes que apresentavam duas cópias do referido gene - uma herdada da mãe, outra do pai - referiam muito menos dores do que os portadores de uma só cópia; e esses, menos dores ainda do que os pacientes não-portadores desse gene.
Genes como o GCH1, que parecem interferir com a excitabilidade dos neurônios, têm sido estudados em doenças raras como uma síndrome de dor neuropática familiar, na qual as pessoas afetadas apresentam dores lancinantes nas mãos e nos pés quando os expõem ao calor, acompanhadas de anormalidades vasculares que tornam as extremidades desses membros avermelhadas. Situações mais freqüentes, como a neuralgia facial, que provoca dores (muito fortes e de curta duração) em fisgada na face, também têm sido analisadas.
Apesar dos avanços dos últimos anos, identificar os genes relacionados à suscetibilidade à dor é tarefa de alta complexidade, porque dor é um sintoma comum a grande número de lesões e de disfunções do sistema nervoso: a dor ciática tem características muito diversas da dor de dente ou daquela provocada por queimadura. Além disso, não resta dúvida de que fatores ambientais, psicológicos e culturais interferem sobre a maneira individual de avaliar a intensidade e de reagir ao quadro de dor.
Mesmo assim, a identificação dos genes envolvidos na condução dos estímulos dolorosos através dos neurônios tem sido perseguida nos últimos anos, pois permitirá individualizar o uso de analgésicos e antiinflamatórios de acordo com as características pessoais, além de identificar portadores de genes que representam fatores de risco para desenvolver dores persistentes depois de cirurgias, traumatismos ou aquelas associadas a doenças crônicas.


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