São Paulo, quinta-feira, 09 de dezembro de 2010

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NINA HORTA

Os livros que eu li


Não pensem que estou fugindo do assunto "comida", esse é o caminho pelo qual devem passar os cronistas


BOM, É agora que a porca torce o rabo. Definitivamente. Me perguntaram, numa entrevista paga, ó céus, só depois fiquei sabendo, sobre os livros que eu li para me tornar cronista de comida da Folha.
A vontade é responder: "Todos". Não estaria muito longe da verdade, pelo menos em matéria de tempo e de falta de sistematização. Vocês acreditam que travei? Como responder a que leitura eu reagira para me formar cozinheira? Cassirer? Huizinga, Erasmo de Rotterdam, Mircea Eliade, Piaget, Sartre?
Depois que já estava consumado o papelão de não saber a resposta, imagino que um bom empurrão tenham sido as revistas americanas de comida. Aqui ainda não tínhamos nada nesse sentido e o "Ladies Home Journal" pode ser lido até hoje sem estar datado, era mensal e moderno e inteligente.
No caminho desta confissão de leitora já deixei para fora coisas que se liam obrigatoriamente, como Hermann Hesse, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, e pelos quais me apaixonei no seu devido tempo.
Atualmente, ao passar pela estante, seria capaz de reler todo Rubem Braga, uns dez contos de Clarice (maravilhosos) e polidamente deixar lá o "Sidarta" para que descanse em paz.
Mas estamos entrando na universidade, acabei de ler a "Ilíada" tardiamente e estou encantada, digo isso num exame oral, que ainda existia, foi o último naquele ano, e o professor pergunta pela edição, pelo tradutor, pela língua em que foi lido. Eu me lembro bem, foi o professor Rui Nunes, especialista em Idade Média que me arguiu e eu tonta de tudo tive a coragem de responder. "Sei lá quem traduziu, que edição era..." Arrepio de vergonha só de pensar. Fez uma cara de que importava sim e muito, mas me passou, achando que era ignorante, mas potencialmente educável.
Os professores para tantos analfabetos que adentravam a faculdade de educação naquele ano eram Maria da Penha Villalobos, Roque Spencer Maciel de Barros, João Eduardo Villalobos (que deslumbre!), Laerte Ramos de Carvalho, Mario Casanova, Pires Azanha, Celso Beisiegel. Suguei o que pude.
Eu vinha de uma escola de freiras que era o fundo do poço negro da ignorância. Perda de tempo total durante sete anos da vida. O que sei até hoje foi aprendido no primário.
Não que faltasse o que decorar. Todas as estrelas do céu, só que nunca soube o que era céu nem estrelas, o simples nomeá-las bastava. Todos os rios do mundo com afluentes e mapas com os mares representados por uma obra genial de desenho, que nos tomava as tardes, que era pintar com lápis de cor bem escuro as margens e depois esfumaçar com o dedo até as ondas se espraiarem pálidas e mais claras.
Não pensem que estou fugindo do assunto "comida", esse é o caminho pelo qual devem passar os cronistas dela. Pensem comigo. Se tivessem me ensinado alguma coisa, eu poderia ter me encaminhado para outro assunto. Não. O único momento em que tinha contato com o real, a única coisa na qual eu podia enfiar as mãos e transformar e criar e escrever era a comida, esse cotidiano irreversível, que salta aos olhos, que agrada a boca, que seduz, nos aproxima do outro, nos mostra quem somos. A universidade fica para depois, "não cabeu".

ninahorta@uol.com.br


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