São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 2004

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"O ETERNO MARIDO"

Tradução realça obra de Dostoiévski

FREE-LANCE PARA A FOLHA

No futebol , constitui opinião corrente de que o bom árbitro é aquele que não aparece, reduz suas intervenções ao mínimo necessário, permite que o jogo flua e deixa que brilhe quem tem que brilhar, ou seja, os atletas.
Já se pensou em transportar esse critério para regentes de orquestra, e, se for possível aplicá-lo à tradução literária, não há atuação melhor, então, que a de Boris Schnaiderman. Venerado como o decano da versão para o português de autores russos como Maiakóvski, Púchkin e Tchekhov, entre outros, o professor Schnaiderman acaba de ter lançada, pela editora 34, sua tradução de "O Eterno Marido", de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881).
Foi praxe durante longo tempo, no Brasil, lançar-se mão de traduções feitas a partir de versões intermediárias (habitualmente francesas) para divulgar por aqui obras escritas em línguas "exóticas", como o russo, ou mesmo o alemão. Nos últimos anos, as editoras têm saudavelmente optado por traduções diretas do original.
Em algumas versões recentes feitas diretamente do original, tradutores parecem tomados de ânsia gigantesca de colocar seu ego entre o leitor e a obra. A impressão que dá é que, sedentos por produzir uma versão diferente das traduções indiretas que tornaram as obras conhecidas no Brasil, eles insistem em um toque supostamente "pessoal", e acabam apelando para escolhas esdrúxulas de título; opções de pontuação válidas na língua original, mas inaceitáveis em português; e uma avalanche de notas de rodapé que são menos explicativas que "desculpativas", com o efeito prático de truncar a leitura.
Em meio a este cenário, a tradução direta de Schnaiderman exala a sabedoria de quem não precisa provar para ninguém sua própria erudição. O professor tem um domínio do português tão magistral como o de sua língua materna, o russo, mas não fica esfregando seus méritos na cara do leitor.
Seu uso das notas de rodapé, por exemplo, é dos mais atentos e pontuais -são 36 intervenções oportuníssimas, que esclarecem o que existe para ser esclarecido, sem excesso nem verborragia. Sinal de uma clarividência exposta no posfácio, no qual Schnaiderman reconhece que, quando as notas aparecem, "além do tempo do enunciado e do tempo da enunciação, acaba aparecendo, para complicar a vida do leitor, o tempo da tradução, mas não há como evitar este inconveniente".
Na gramática como no futebol, a regra é clara; o que faz a diferença é sua interpretação. Sóbrio e elegante, em vez de se interpor entre o leitor e Dostoiévski, Schnaiderman abre alas para a fruição de uma das obras mais equilibradas e envolventes do autor russo, que suscitou a Henry Miller, em seu "Trópico de Câncer", a pergunta retórica: "existe algo mais perfeito que "O Eterno Marido'?".

Dueto
Aleksiéi Ivânovitch Vieltchâninov é um habitante de São Petersburgo, sufocado no verão russo, atolado em pendengas judiciais e em crise pela "velhice": tem "trinta e oito ou menos trinta e nove anos". Vidinha besta, como se vê, subitamente sacudida pelo reencontro, após nove anos, com o viúvo de uma ex-amante sua. A partir daí, é impossível desgrudar o olho do livro enquanto acompanhamos o jogo de intensa repulsa e atração entre esses dois personagens que têm em comum muito mais do que uma mulher.
Trata-se de uma novela, como queria o autor? De um romance curto, como afirma o tradutor? Difícil classificar. Talvez "O Eterno Marido" deva ser simplesmente caracterizado como um dos mais extraordinários duetos da história da literatura, uma partitura que soa encantadoramente em português graças à batuta mágica do maestro Boris Schnaiderman.
(IRINEU FRANCO PERPETUO)


O Eterno Marido
    
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: 34
Quanto: R$ 29 (216 págs.)



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