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"O ETERNO MARIDO"
Tradução realça obra de Dostoiévski
FREE-LANCE PARA A FOLHA
No futebol , constitui opinião corrente de que o bom
árbitro é aquele que não aparece,
reduz suas intervenções ao mínimo necessário, permite que o jogo
flua e deixa que brilhe quem tem
que brilhar, ou seja, os atletas.
Já se pensou em transportar esse critério para regentes de orquestra, e, se for possível aplicá-lo
à tradução literária, não há atuação melhor, então, que a de Boris
Schnaiderman. Venerado como o
decano da versão para o português de autores russos como
Maiakóvski, Púchkin e Tchekhov,
entre outros, o professor Schnaiderman acaba de ter lançada, pela
editora 34, sua tradução de "O
Eterno Marido", de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881).
Foi praxe durante longo tempo,
no Brasil, lançar-se mão de traduções feitas a partir de versões intermediárias (habitualmente
francesas) para divulgar por aqui
obras escritas em línguas "exóticas", como o russo, ou mesmo o
alemão. Nos últimos anos, as editoras têm saudavelmente optado
por traduções diretas do original.
Em algumas versões recentes
feitas diretamente do original, tradutores parecem tomados de ânsia gigantesca de colocar seu ego
entre o leitor e a obra. A impressão que dá é que, sedentos por
produzir uma versão diferente
das traduções indiretas que tornaram as obras conhecidas no
Brasil, eles insistem em um toque
supostamente "pessoal", e acabam apelando para escolhas esdrúxulas de título; opções de pontuação válidas na língua original,
mas inaceitáveis em português; e
uma avalanche de notas de rodapé que são menos explicativas que
"desculpativas", com o efeito prático de truncar a leitura.
Em meio a este cenário, a tradução direta de Schnaiderman exala
a sabedoria de quem não precisa
provar para ninguém sua própria
erudição. O professor tem um domínio do português tão magistral
como o de sua língua materna, o
russo, mas não fica esfregando
seus méritos na cara do leitor.
Seu uso das notas de rodapé,
por exemplo, é dos mais atentos e
pontuais -são 36 intervenções
oportuníssimas, que esclarecem o
que existe para ser esclarecido,
sem excesso nem verborragia. Sinal de uma clarividência exposta
no posfácio, no qual Schnaiderman reconhece que, quando as
notas aparecem, "além do tempo
do enunciado e do tempo da
enunciação, acaba aparecendo,
para complicar a vida do leitor, o
tempo da tradução, mas não há
como evitar este inconveniente".
Na gramática como no futebol,
a regra é clara; o que faz a diferença é sua interpretação. Sóbrio e
elegante, em vez de se interpor entre o leitor e Dostoiévski, Schnaiderman abre alas para a fruição de
uma das obras mais equilibradas
e envolventes do autor russo, que
suscitou a Henry Miller, em seu
"Trópico de Câncer", a pergunta
retórica: "existe algo mais perfeito
que "O Eterno Marido'?".
Dueto
Aleksiéi Ivânovitch Vieltchâninov é um habitante de São Petersburgo, sufocado no verão russo,
atolado em pendengas judiciais e
em crise pela "velhice": tem "trinta e oito ou menos trinta e nove
anos". Vidinha besta, como se vê,
subitamente sacudida pelo reencontro, após nove anos, com o
viúvo de uma ex-amante sua. A
partir daí, é impossível desgrudar
o olho do livro enquanto acompanhamos o jogo de intensa repulsa
e atração entre esses dois personagens que têm em comum muito mais do que uma mulher.
Trata-se de uma novela, como
queria o autor? De um romance
curto, como afirma o tradutor?
Difícil classificar. Talvez "O Eterno Marido" deva ser simplesmente caracterizado como um dos
mais extraordinários duetos da
história da literatura, uma partitura que soa encantadoramente
em português graças à batuta mágica do maestro Boris Schnaiderman.
(IRINEU FRANCO PERPETUO)
O Eterno Marido
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Boris Schnaiderman
Editora: 34
Quanto: R$ 29 (216 págs.)
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