São Paulo, sábado, 10 de janeiro de 2004

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"HISTÓRIAS DA PRÉ-HISTÓRIA"

Contos do escritor italiano alcançam o equilíbrio mais sutil entre a lucidez e a fantasia

Alberto Moravia conta suas fábulas fabulosas

COLUNISTA DA FOLHA

Desde que a literatura existe -ou pelo menos desde Esopo, no século 6 a.C.-, os escritores ocasionalmente servem-se de fábulas protagonizadas por animais para comentar de modo oblíquo as imperfeições humanas.
É nessa linhagem que se inserem as "Histórias da Pré-História", do italiano Alberto Moravia (1907-90), publicadas originalmente em 1982 e agora lançadas no Brasil pela Editora 34.
Só que, diferentemente do que costuma ocorrer com as fábulas convencionais, as historietas de Moravia não desembocam num preceito moral que confira um sentido unívoco e definitivo aos acontecimentos narrados.
Ao contrário: seu universo ficcional é um terreno repleto de ambiguidades e de caminhos abertos à mudança e à invenção.
Nesse aspecto de subversão de uma leitura teleológica e moralista (em sentido estrito) do mundo, as "Histórias da Pré-História" lembram um pouco as "Fábulas Fabulosas", de Millôr Fernandes, com as quais compartilham, de resto, o humor desabusado e um acintoso anacronismo.

"Ah Dãoh e Eh Vah"
Exemplar, nesse sentido, é o conto "Ah Dãoh e Eh Vah: Aqueles Preguiçosos", paródia impagável do episódio bíblico da expulsão do Paraíso.
No livro de Moravia, Deus (ou melhor, Jeh Oh Vah) é um diligente hortelão que mantém sua propriedade, o Éh Dehn, num estado de exuberância e limpeza perfeitas.
Mas um dia ele hospeda Ah Dão e Eh Vah, "dois vagabundos sem eira nem beira, que não faziam nada além de tocar violão, dançar, cantar e fumar baseados". Para se livrar dos visitantes incômodos, o hortelão convence a Ser Pente a induzi-los a cometer uma transgressão, dando-lhe o pretexto para a expulsão.
Mas, devido a um imbróglio que não convém revelar aqui, tudo sai errado e Jeh Oh Vah é que resolve ir embora, deixando sua arruinada propriedade ao casal de hippies "avant la lettre".
Em outras histórias é uma giganta chamada Mãe Na Tureza que cria os seres do mundo e, eventualmente, aperfeiçoa-os de acordo com as próprias pretensões destes.
Em três ou quatro passagens é impossível não lembrar da "Reforma da Natureza" de Monteiro Lobato.
Quase todos os bichos têm suas queixas e reivindicações -o que permite a Moravia desenvolver os temas da identidade, da ambição e das diferenças culturais.
Permite-lhe também inventar um mundo pré-histórico em que os camelos têm chifres frondosos, as girafas não têm pescoço e a baleia é um animal minúsculo que vive numa poça.

Homem como anomalia
É como se o autor se divertisse imaginando variantes da história natural, ou mundos alternativos que poderiam ter surgido se, numa encruzilhada do tempo, a natureza tivesse seguido outro caminho. Pensando bem, não deixa de ser esse um dos papéis da arte e da literatura.
Nesse universo de bichos antropomórficos, o homem, quando surge, é uma curiosa e indecifrável anomalia.
Num conto ambientado na Austrália de nossos dias, um canguru, cobiçando calções iguais aos dos humanos, tenta se comunicar com um homem usando a ajuda de um papagaio e de um macaco. O primeiro conhece "a Palavra"; o segundo, "o Gesto" -os dois instrumentos de comunicação humana.
A maneira como Moravia conduz a empreitada ao desastre inexorável reveste o relato de uma comicidade que se poderia chamar de trágica e que remete a Kafka e até mesmo a Beckett.
Longe de ser um mero divertimento infanto-juvenil, as "Histórias da Pré-História" revelam Moravia na plenitude de sua capacidade criativa.
Suas fabulosas fábulas são mais uma faceta de uma obra que, partindo de um despojado realismo social, acabou se espraiando ao longo de seis décadas em várias direções, mas sempre tendo como bússola uma investigação iluminista do homem, inspirada no marxismo e na psicanálise.
Em "Histórias da Pré-História", o autor de "Os Indiferentes", "La Ciociara" e "Desideria" alcança talvez o equilíbrio mais sutil entre a lucidez e a fantasia.
Trata-se mais de um livro jovial do que propriamente infantil. Com sua leveza e sua graça -e sobretudo com seu respeito à inteligência e à imaginação do leitor-, é recomendado a todas as faixas etárias.
Na edição brasileira, as elegantes ilustrações de Cecília Esteves acompanham perfeitamente o generoso espírito do texto.
(JOSÉ GERALDO COUTO)


Histórias da Pré-História
    
Autor: Alberto Moravia
Tradução: Nilson Moulin
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (237 págs.)



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