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"HISTÓRIAS DA PRÉ-HISTÓRIA"
Contos do escritor italiano alcançam o equilíbrio mais sutil entre a lucidez e a fantasia
Alberto Moravia conta suas fábulas fabulosas
COLUNISTA DA FOLHA
Desde que a literatura existe
-ou pelo menos desde Esopo, no século 6 a.C.-, os escritores ocasionalmente servem-se de
fábulas protagonizadas por animais para comentar de modo
oblíquo as imperfeições humanas.
É nessa linhagem que se inserem as "Histórias da Pré-História", do italiano Alberto Moravia
(1907-90), publicadas originalmente em 1982 e agora lançadas
no Brasil pela Editora 34.
Só que, diferentemente do que
costuma ocorrer com as fábulas
convencionais, as historietas de
Moravia não desembocam num
preceito moral que confira um
sentido unívoco e definitivo aos
acontecimentos narrados.
Ao contrário: seu universo ficcional é um terreno repleto de
ambiguidades e de caminhos
abertos à mudança e à invenção.
Nesse aspecto de subversão de
uma leitura teleológica e moralista (em sentido estrito) do mundo,
as "Histórias da Pré-História"
lembram um pouco as "Fábulas
Fabulosas", de Millôr Fernandes,
com as quais compartilham, de
resto, o humor desabusado e um
acintoso anacronismo.
"Ah Dãoh e Eh Vah"
Exemplar, nesse sentido, é o
conto "Ah Dãoh e Eh Vah: Aqueles Preguiçosos", paródia impagável do episódio bíblico da expulsão do Paraíso.
No livro de Moravia, Deus (ou
melhor, Jeh Oh Vah) é um diligente hortelão que mantém sua
propriedade, o Éh Dehn, num estado de exuberância e limpeza
perfeitas.
Mas um dia ele hospeda Ah Dão
e Eh Vah, "dois vagabundos sem
eira nem beira, que não faziam
nada além de tocar violão, dançar,
cantar e fumar baseados". Para se
livrar dos visitantes incômodos, o
hortelão convence a Ser Pente a
induzi-los a cometer uma transgressão, dando-lhe o pretexto para a expulsão.
Mas, devido a um imbróglio
que não convém revelar aqui, tudo sai errado e Jeh Oh Vah é que
resolve ir embora, deixando sua
arruinada propriedade ao casal de
hippies "avant la lettre".
Em outras histórias é uma giganta chamada Mãe Na Tureza
que cria os seres do mundo e,
eventualmente, aperfeiçoa-os de
acordo com as próprias pretensões destes.
Em três ou quatro passagens é
impossível não lembrar da "Reforma da Natureza" de Monteiro
Lobato.
Quase todos os bichos têm suas
queixas e reivindicações -o que
permite a Moravia desenvolver os
temas da identidade, da ambição
e das diferenças culturais.
Permite-lhe também inventar
um mundo pré-histórico em que
os camelos têm chifres frondosos,
as girafas não têm pescoço e a baleia é um animal minúsculo que
vive numa poça.
Homem como anomalia
É como se o autor se divertisse
imaginando variantes da história
natural, ou mundos alternativos
que poderiam ter surgido se, numa encruzilhada do tempo, a natureza tivesse seguido outro caminho. Pensando bem, não deixa de
ser esse um dos papéis da arte e da
literatura.
Nesse universo de bichos antropomórficos, o homem, quando
surge, é uma curiosa e indecifrável anomalia.
Num conto ambientado na
Austrália de nossos dias, um canguru, cobiçando calções iguais
aos dos humanos, tenta se comunicar com um homem usando a
ajuda de um papagaio e de um
macaco. O primeiro conhece "a
Palavra"; o segundo, "o Gesto"
-os dois instrumentos de comunicação humana.
A maneira como Moravia conduz a empreitada ao desastre inexorável reveste o relato de uma
comicidade que se poderia chamar de trágica e que remete a Kafka e até mesmo a Beckett.
Longe de ser um mero divertimento infanto-juvenil, as "Histórias da Pré-História" revelam Moravia na plenitude de sua capacidade criativa.
Suas fabulosas fábulas são mais
uma faceta de uma obra que, partindo de um despojado realismo
social, acabou se espraiando ao
longo de seis décadas em várias
direções, mas sempre tendo como
bússola uma investigação iluminista do homem, inspirada no
marxismo e na psicanálise.
Em "Histórias da Pré-História",
o autor de "Os Indiferentes", "La
Ciociara" e "Desideria" alcança
talvez o equilíbrio mais sutil entre
a lucidez e a fantasia.
Trata-se mais de um livro jovial
do que propriamente infantil.
Com sua leveza e sua graça -e
sobretudo com seu respeito à inteligência e à imaginação do leitor-, é recomendado a todas as
faixas etárias.
Na edição brasileira, as elegantes ilustrações de Cecília Esteves
acompanham perfeitamente o generoso espírito do texto.
(JOSÉ GERALDO COUTO)
Histórias da Pré-História
Autor: Alberto Moravia
Tradução: Nilson Moulin
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (237 págs.)
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