São Paulo, quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

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comentário

A arte pode reinventar e reparar tudo

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Alguém entendido em "cinemão" diria que "Desejo e Reparação" apela para recursos fáceis de dramaturgia. Que o protagonista, num parque de diversões devastado pela guerra, atinge as vísceras de qualquer um: grandiloqüência, desespero. Mas não sou especialista.
Talvez só goste de histórias. E, nesse sentido, o filme é brilhante. Ele é exatamente sobre o que a história e a literatura são capazes de fazer.
Uma garota fantasiosa, Briony, com olhos que vêem mais a fantasia do que a realidade (e, afinal, o que é isso?), é capaz de arruinar a vida das pessoas que mais ama. Por imaginação, amor e medo, coisas muito próximas e, até, indiferenciáveis.
A história é adaptada do livro homônimo de Ian McEwan, e o filme é produzido por ele próprio. Na narrativa, a fantasia, mesmo que de um modo ingênuo, provoca o mal, e a idéia mais difícil é a da reparação.
Melanie Klein, em "Amor, Ódio e Reparação", mostra que a última é uma das práticas mais dignas de um indivíduo. A reparação é um arrependimento ativo, que requer mergulho no cerne do vazio, para poder retratar o estrago.
Nem todos são capazes de reparar; é preciso coragem, mais do que para provocar o sofrimento.
A questão do filme é: se um escritor pode tudo, como Deus, de que vale sua tentativa de reparação? "Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus." É o que diz Briony no final de sua vida, na interpretação inacreditável de Vanessa Redgrave, o que faz valer o filme, mesmo para os especialistas.
Como a arte pode reparar tudo, pois inventa a realidade, talvez ela não seja capaz de reparar nada.
Não posso concordar com isso. Mesmo que as vítimas não se beneficiem da reparação do artista, nós, espectadores catárticos, teremos nosso terror e nossa piedade, prontos para possíveis reparações.


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