|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
A Europa apavorada consigo mesma
Um partido de inspiração aparentemente neonazista entrou na
coalizão que governa a Áustria.
Ele representa quase um terço do
eleitorado. A Europa está apavorada. Deve ser consigo mesma,
pois, na verdade, o sucesso da extrema direita européia não é nenhuma novidade. Na Itália, ela já
esteve no governo. Na França,
conquistou administrações regionais e municipais. No resto da Europa, ela é uma presença violenta
e constante.
Atrás dos apetrechos nostálgicos
-suásticas e braços erguidos-,
há hoje um denominador comum
simples e popular: o ódio aos imigrantes.
Os europeus são uma espécie em
via de desaparição. Em poucos
anos, na Europa, haverá um aposentado para cada dois trabalhadores ativos: uma carga insustentável. É necessário receber imigrantes.
Ora, acontece que a União Européia não se apresenta como
uma etnia. Nem como um território. Também nega que esteja reunida ao redor de vulgares interesses econômicos. Ela quer se definir, em suma, como uma herança
espiritual, ou seja, uma cultura.
Acontece também que os candidatos a imigrar para Europa vêm
do mundo muçulmano, da África
negra ou dos países eslavos ex-comunistas.
A essas três categorias de imigrantes são reservados sentimentos diferentes.
Os eslavos são desagradáveis
concorrentes no mercado dos empregos de base ou então candidatos à delinquência.
Os africanos negros são mais tolerados que os muçulmanos: o inquietante não é a cor da pele. O
racismo europeu é cultural. Ora,
os negros africanos, aos olhos dos
europeus, vêm de culturas primitivas e subalternas. Seu destino
presumível, a médio prazo, é a colonização de seus espíritos: por
mais que sejam negros, se tornarão europeus de alma.
Os muçulmanos são os mais detestados, pois, ao contrário dos
negros, são altivos e antagônicos:
o Islã é uma cultura forte, se não
expansionista, no mínimo autônoma. Em outras palavras, os negros africanos podem ocupar as
ruas de Paris ou Viena, pois, de
qualquer forma, consola-se a direita européia -colonizaremos
suas mentes como, no passado,
colonizamos seus países. Os muçulmanos, ocupando as mesmas
ruas, não abrem seus espíritos aos
charmes europeus. Quem sabe
eles até tentem corromper nossas
mentes.
A raiva xenófoba se alimenta
hoje desta contradição: o continente precisa de imigrantes para
sobreviver, mas ele não sabe lidar
com culturas diferentes sem se
sentir ameaçado em seu fundamento.
As soluções (capengas) a esta
contradição têm um custo econômico alto. Limitar a chegada de
imigrantes significa parar de crescer. Impor uniformidade cultural
para aqueles que imigram, assimilá-los à força, não é só ideologicamente intolerável, é também
ruim para a diversidade do consumo.
Fora da Europa, há países que
prosperam evitando estes impasses: os EUA se mantiveram abertos à imigração e veneram as diferenças culturais. Nos últimos 50
anos, eles inventaram assim, dentro de sua própria sociedade, uma
espécie de modelo para uma globalização bem-sucedida. A proposta é: podemos e devemos ser
todos diferentes, à condição de
que tenhamos em comum o desejo de prosperar e de que nossa diferença não interfira na prosperidade.
As peculiaridades (etnias, estilos
de vida, orientações sexuais etc.)
são exaltadas, garantindo uma
rentável diversificação de costumes e consumo. Mas elas são subordinadas ao pressuposto comum pelo qual, no jogo econômico, as diferenças devem ser tão
acessórias quanto a livre escolha
da cor da gravata em um escritório dos anos 50.
A Europa, em suma, gostaria de
participar da festa neoliberal, mas
se atrapalha, pois sonha que o homem global possa seguir se definindo pela cultura concreta da
qual é filho. Por exemplo: "Sou
global, ganho global, invisto global, mas sigo francês e me defino
pela baguete e por Godard". Isso
acaba em: "Sou austríaco e não
gosto de "turco'". O que é péssimo
para a produção e para os negócios.
Os EUA descobriram que o homem global pode manifestar sua
originalidade. Afinal, Godard e as
calças curtas de couro à tirolesa
são bens de consumo: que cada
um compre livremente. Ora, preço
da prosperidade: estas diferenças
todas devem ser de brincadeira,
pois por cima delas paira uma
única cultura de verdade, pela
qual, apesar de nossas pretensas
diferenças, somos todos agentes
econômicos intercambiáveis.
E o Brasil nesta história? Uma
glória explícita da cultura brasileira é a capacidade de digerir,
misturar e, portanto, respeitar todo tipo de diferença. Mas, curiosamente, o país se fechou à imigração, como a Europa. Não foi
por receio da variedade dos imigrantes. Foi para que mais ninguém viesse aproveitar do bolo.
Por herança do extrativismo português, o Brasil foi, e talvez ainda
seja, patrimonialista. Espera-se a
prosperidade não tanto do trabalho e da invenção produtiva,
quanto de tesouros escondidos:
ouro (amarelo ou verde), prata,
diamantes e esmeraldas, petróleo,
sem falar dos segredos biológicos
das plantas amazônicas. É ainda
outro tipo de impasse.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Carta de Marear Próximo Texto: Bono estréia otimista em Berlim Índice
|