São Paulo, sábado, 10 de março de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"TIROS NA NOITE"

Publicação reúne 20 histórias do escritor Dashiell Hammett

Coletânea traz contos atípicos

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É duro falar de um ícone da cultura pop como Dashiell Hammett sem repetir os clichês de sempre -"renovador do gênero", "a escrita dura das ru- as"- , portanto vamos direto ao ponto.
"Tiros na Noite" (não dá para entender exatamente porque o título original, "Nightmare Town", foi mudado) reúne 20 contos mais ou menos raros do escritor norte-americano.
São histórias escritas entre as décadas de 20 e 30, a maioria delas publicada nas revistas baratas para as quais Hammett destinou boa parte de sua produção.
Coletâneas desse tipo, ainda por cima quando são lançadas próximas a efemérides ("edição em homenagem aos 40 anos da morte do escritor", anuncia a capa do livro), costumam ser mais adequadas para fãs ardorosos do que para o público em geral.
"Tiros na Noite" fica numa espécie de meio caminho. Não exatamente a raspa do tacho, mas não chega a constituir leitura imprescindível.
Há sim uns tantos contos abaixo da média do escritor, cuja leitura só deve interessar aos aficionados.
Por exemplo, "Um Homem Chamado Thin", em que Hammett surpreendentemente mimetiza a tradição inglesa e aristocrática da história de mistério. Inventa um protagonista "sensível", dado a um hobby do espírito (mau) poeta, que descobre os culpados de um assalto por uma incongruência mínima no depoimento de um deles.
Em tudo o conto lembra Conan Doyle, mas, se o inglês tira graça justamente ao exagerar a excentricidade e a argúcia de Sherlock Holmes, a trama e o personagem de Hammett simplesmente soam inverossímeis, e o "tour de force" do raciocínio, lerdo.
Ao lado deles, entretanto, a compilação traz tanto histórias em que Hammett experimenta (com sucesso) formatos que não são o seu habitual como (bons) exemplos do estilo que o consagrou.
Nessas histórias mais desviantes, percebe-se o quanto a lenda e o culto pop são capazes de obscurecer o escritor real. O culto, que sempre lista as profissões diversas que Hammett teve antes de tornar-se escritor, inclusive e sobretudo o fato de ele ter sido de fato um detetive, nos dá a impressão de um escritor quase espontâneo, que levou apenas sua experiência real para a máquina de escrever (além do copo de bourbon, claro).
Pois bem, Hammett leu e bastante. Em "Quem Matou Dan Odams", percebem-se claramente ecos da desolação geográfica e social que eram os temas caros a Jack London. "O Anjo do Segundo Andar" brinca abertamente com a paródia e um certo clima bufo, quase próximo das peripécias do "Tom Jones" de Henry Fielding. "A Mulher do Bandido" tenta uma exploração psicológica que lembra Sinclair Lewis.
Esses indícios também sugerem que, apesar de tirar seu sustento e fama das histórias de detetive e de ter catapultado o policial a um patamar ético e estético menos chão, Hammett tinha um plano literário mais ambicioso do que o que as "pulp magazines" ou Hollywood, que transpôs a atmosfera sombria do "hard boiled" de Hammett com mestria em filmes como "O Falcão Maltês", poderiam conter.
Hammett, entretanto, não realizaria tal projeto literário. Pena, pois os exemplos contidos na compilação abrem alguns caminhos promissores, onde uma certa diversidade, sobretudo de ambientação, e a baliza da narração seca teriam formado uma dupla bacana. Mas ele parou em "A Ceia dos Acusados".
Uma primeira (e ótima, diga-se de passagem) versão do que viria a ser seu último livro está na coletânea, ainda sem a dupla de detetives elegantes e sofisticados Nick & Nora, que os hammettianos mais duros consideram já um sintoma da má influência que a grana de Hollywood e Lillian Hellman estariam exercendo sobre o escritor -por sinal, a mulher-malvada-que-emperra-a-criatividade-do-cara-talentoso é outro velho clássico da cultura pop, vide Lennon & Yoko, Cobain & Love.
Noves fora, "Tiros na Noite" instrui e diverte: as narrativas ágeis, plenas de um niilismo charmoso e uma certa agudeza no olhar para realidades urbanas tornando-se definitivamente modernas e decididamente violentas, estão lá, ao lado de uns tantos Hammetts desviantes, atípicos, material para quem gosta de olhar pelas frestas.



Tiros na Noite
Nightmare Town
  
Autor: Dashiell Hammett
Tradutores: Alexandre Raposo, Heloisa Seixas, Ivanir Calado, Luiz Antonio Aguiar, Marcos Santarrita, Rafael Cardoso, Roberto Mugiatti, Rubem Mauro Machado
Editora: Record
Quanto: R$ 50 (544 págs.)




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