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LITERATURA
Escritor considera obra de 74, sobre um homem que tem o pênis decepado, sua melhor ficção
Cony volta a se render a "Pilatos"
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Saiu o livro preferido de Carlos
Heitor Cony. ""Pilatos" é a minha
visão do mundo, e acho que vou
morrer com ela", diz o escritor,
colunista e membro do Conselho
Editorial da Folha.
Inicialmente publicado em 1974
e reeditado agora pela Companhia das Letras, "Pilatos" -nono
romance do autor- conta as andanças de um mendigo sem pênis
pelo submundo carioca. Mutilado
depois de um atropelamento, o
protagonista carrega consigo o
membro decepado, guardado
num vidro de compota, enquanto
tenta sobreviver pelas ruas do Rio.
Cony ficou tão satisfeito com
"Pilatos" que deixou de escrever
romances por mais de 20 anos. O
retorno aconteceu em 1995, com o
premiado "Quase Memória".
O título, "Pilatos", tirado de
uma letra de Paulo Vanzolini
("Samba Erudito"), refere-se
mais ao momento que Cony vivia
no começo dos anos 70 do que ao
enredo da obra. O escritor conta
que, ao ouvir os versos de Vanzolini ("E assim me rendi ante a força dos fatos: lavei minhas mãos
como Pôncio Pilatos"), percebeu
que era o momento de "dar uma
banana à política e à literatura".
"Para a política, porque esperavam de mim naquele contexto do
regime militar um livro engajado,
e, para a literatura, porque fiz a
coisa mais antiliterária possível."
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o escritor
concedeu à Folha.
Folha - Você diz que "Pilatos" é
seu melhor livro. Por quê?
Carlos Heitor Cony - É o livro de
que mais gosto. Considero-o melhor porque é o meu livro mais
"meu". Todos os outros poderiam ter sido escritos por qualquer um. O "Quase Memória",
por exemplo, qualquer um poderia fazê-lo, um pouco melhor, um
pouco pior. Em sua estrutura, é
um livro tradicional, no conteúdo, na linguagem, na técnica. Como "Guerra e Paz". Eu posso fazê-la, é claro que vai ser uma "Guerra
e Paz" vagabunda, mas posso tentar. Do mesmo jeito, todos os
meus livros poderiam ser feitos
por outras pessoas, de forma pior
ou melhor. Mas "Pilatos" não, é
um livro muito próprio meu.
Folha - Parece haver um parentesco entre "O Ventre" (1958, seu
primeiro livro) e "Pilatos", no que
diz respeito à escatologia, à pornografia e a uma constante sensação
de repulsa. Você concorda?
Cony - O Otto Maria Carpeaux
dizia que havia germes de "Pilatos" em "O Ventre". Acontece que
"O Ventre" foi o meu primeiro livro, eu não tinha ainda experiência nem técnica literária. Era um
principiante, influenciado por
Sartre e Machado de Assis. Talvez
eu tivesse vontade de escrever algo como o "Pilatos" na época,
mas eu não saberia fazê-lo, então
fiz "O Ventre". "Pilatos" foi escrito na minha maturidade, eu tinha
42 anos, estava numa fase muito
boa e escrevi o livro, que considero uma espécie de fala do trono.
Dei uma banana para a literatura.
E para a moral, para os bons costumes, para a condição humana.
Lavei as mãos. Daí "Pilatos".
Folha - A inspiração veio de uma
música do Paulo Vanzolini, mas o
título do livro não tem relação com
o enredo. Dizia mais respeito ao
momento que você vivia?
Cony - Sim. Eu estava tirando o
corpo fora. Vinha de uma participação política muito grande por
meio do jornalismo, fui preso. Estava muito engajado e, de repente,
resolvi lavar as mãos. Não só da
vida política, mas também da vida
social, da vida-vida. O que me irritou foi a recepção que o livro teve,
muita gente considerou-o de sacanagem, erótico. Mas ele é anti-erótico, acho que uma pessoa que
lê o livro passa um ano sem tesão.
Folha - Você aposta mais na repulsa do que na idéia de erotismo.
Cony - Exatamente, o livro passa
uma repulsa ao sexo. Quando eu
o escrevi, estava dirigindo uma revista masculina. Minha função
era visitar o juiz de menores, militares, e explicar que aquilo não
era pornografia, era erotismo. A
gente falava da Renascença, do nu
dos gregos. Então eu tomei um
nojo terrível pelo erotismo e achei
que o certo seria a pornografia
pura e simples. Fiquei com um
profundo horror a essa coisa burguesa de enaltecer o erotismo,
achar que é uma coisa bacana, sofisticada e, ao mesmo tempo, desprezar a pornografia, quando a
pornografia é mais humana.
Folha - Como um homem que perdeu tudo, privado até de seu órgão
sexual, pode se apegar à vida?
Cony - Ele perdeu tudo e não
quis se separar do vidro com o pênis dentro para ter uma referência
do que poderia ter sido. Isso tem a
ver com a situação do Brasil. O livro foi escrito em 72, logo depois
dos acontecimentos políticos do
final dos 60. Havia um clima de
questionamento do que seria a
condição humana. E eu achei que
um homem sem o pênis seria talvez símbolo do homem da época.
Folha - Você diz que não gostou
da forma como o público reagiu ao
livro quando foi lançado. Por quê?
Cony - Eu não esperava recepção. Meu editor me avisou: isso
não é livro que se faça. Ele só publicou porque eu tinha uma situação boa na editora. O que fizeram
foi a homenagem do silêncio. Eu
entendi isso, foi consciente.
Folha - Consciente?
Cony - Sim, as pessoas esperavam um livro político. E este, em
certos aspectos, poderia ser visto
como um livro covarde, eu não
queria me comprometer. Mas
não era isso, era a consciência da
inutilidade da minha luta. Não da
luta em si, mas da minha luta.
Folha - E você sente que o livro o
libertou mesmo?
Cony - Sim, eu só voltei a escrever ficção porque estou vivendo
mais que minha obra. Com Thomas Mann foi o mesmo. Ele dizia
que o azar dele tinha sido não ter
morrido depois de ter escrito
"Doutor Fausto". Eu também, deveria ter morrido nesse meio tempo. Quando voltei, fiz questão de
fazer referência a "Pilatos" e à boa
fase que eu vivia na época.
Livro: Pilatos
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (219 págs.)
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