UOL


São Paulo, segunda-feira, 10 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES

Enfatizando o processo, e não a obra, artistas revivem vanguarda

Festa Dadá continua a acontecer na Suíça

EDUARDO SIMANTOB
DE ZURIQUE

Até o ano passado, eles eram um coletivo anônimo e disforme, uma combinação de sem-tetos, militantes antiglobalização e artistas mambembes. Mas quando uma seguradora suíça anunciou sua intenção em transformar um prédio abandonado na cidade velha de Zurique numa farmácia, descobriram-se dadaístas.
Lembrou-se então que o tal prédio abrigava o famigerado Cabaret Voltaire, o berço do dadaísmo. A tomada de tão importante marco pelo grande capital justificou, para os novos dadás, a ocupação ilegal do imóvel em janeiro do ano passado, ressuscitando o Cabaret Voltaire, versão século 21, assim como a dadanarquia como resistência artística ao mercado e às instituições culturais.
Fac-símiles de manifestos dadaístas originais, ao lado de "releituras", foram pregados às paredes, as portas reabriram para todo tipo de arte espontânea. A Justiça zuriquenha concedeu permissão de ocupação até o início das obras, marcadas para maio passado. A seguradora, a gigante Rentenanstalt-Swiss Life, concordou em ceder o prédio, caso os invasores (pessoa jurídica: Fundação Krösus, de Creso, último rei da Lídia, 560-546 a.C., e quem primeiro cunhou moedas de ouro) conseguissem angariar US$ 1,3 milhão para adquiri-lo.
Durante quatro meses, o CV recebeu artistas de diversas partes da Europa e além, reacendendo a memória até mesmo dos nativos, que mal tinham idéia do que se tratava o tal dadaísmo, e muito menos que Zurique foi seu berço.
Sucesso: Dadá invadiu as páginas culturais e, mais importante, diversos fanzines e publicações alternativas. O debate sobre como resgatar a memória Dadá ocupou os noticiários locais, a Swatch se dispôs a patrocinar um museu do dadaísmo, mas o dinheiro levantado, por fim, não chegou a uma fração do necessário.
Assim, decidiu-se devolvê-lo à população da maneira mais dadaísta possível: pela janela, e poucos passantes se deram ao trabalho de se agachar para catar as notas e moedas que choviam do Cabaret Voltaire em seu último dia antes de virar farmácia.
A partir de então, Dadá virou uma "festa móvel" por Zurique, até que uma "conferência de imprensa" veio comunicar a invasão de uma fábrica abandonada, para abrigar mais um Festival Dadá por período efêmero.
Hostess não-oficial (nada é oficial, afinal) do finado Cabaret Voltaire, a drag queen Veuve Clicquot concede que "a transitoriedade espacial é indispensável para se evitar a institucionalização e a mercantilização do Dadá".
Certamente essa não é a primeira vez, em quase um século, que a dadanarquia é reapropriada. Dadá também já foi invocado nos primórdios da contracultura dos anos 60 e na cena alternativa européia do início dos 80.
A apropriação da atitude anárquica e anticomercial pelo coletivo multinacional da Fundação Krösus pretende demonstrar que Dadá não só continua vivo, como também não se rendeu.
Dadá desconsidera a perenidade da obra de arte e não admite ser trancafiado num museu ou galeria. É mesmo difícil crer que alguém possa se interessar em comprar qualquer uma das obras expostas pelo labirinto de galpões da fábrica Sihlpapier.
"Arte não é a obra, é o processo", sintetiza o dinamarquês sem nome, depois de um dia pintando as palavras de seu poema minimalista por paredes da fábrica. Um slam-poet negro agarra o microfone: "Säged Jaja!" (digam ia-ia!), declama. "Säged Dada!" (digam Dadá!) é a resposta do coro. Segue-se o concerto de um rapper alemão, a noite toca em frente, toda noite até o dia 1º/3, prazo dado pela prefeitura para a desocupação da fábrica, mas "a festa continua", garante Veuve Clicquot.



Texto Anterior: Cinema: Solidão fecha "trilogia da exclusão" de Kaurismäki
Próximo Texto: Movimento foi reação à arte comercial
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.