São Paulo, sexta, 10 de abril de 1998

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TELEVISÃO
Exorcismo travesti e calvinismo mulato

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

"Ligue djá, não espere, ligue djá", repete na TV o adamato Ualter Mercado, alardeando (com seu nome-mercância) que é o megachefe dos "melhores videntes do mundo".
"Ligue djá!"
Em todo canal de TV deparamos com um profeta de plantão. A função precípua do vidente consiste em prever o futuro.
O sociólogo Max Weber errou em seu célebre diagnóstico: a racionalidade científica não engendra o desencantamento do mundo, nem tampouco a privatização bourgeoise da religião provoca o ocaso dos profetas.
"Ligue djá!"
Nosso inesquecível Luís da Câmara Cascudo é quem estava certo: astronauta pisa na Lua com pata de coelho no bolso. Talismã da sorte.
Bobagem dos apressadinhos da sociologia estabelecerem de modo mecânico a antinomia do folclore com o universo urbano. A indústria não elimina a superstição, que é a essência da cultura popular. Olho gordo, passar debaixo da escada, número 13, etc. E, como dizia o escritor Gilberto Amado, só o jumento não tem superstição.
You and your's superstitions.
O vidente Ualter Mercado o vídeo-sincretismo plástico (lembra personagens histéricos nos filmes de Fellini), através da necessidade eletrônica de prever o dia de amanhã.
Por outro lado, brinco na orelha, pulseirinha do Senhor do Bonfim, amuletos de popstars, cada telespectador é tido por um devoto em potencial, ou seja cada telespectador com a sua macumba -macumba que já foi candomblé e agora é umbanda. De resto, existem muitos traços umbandistas no cenário gestual da Igreja Universal do Reino de Deus.
O empresário brasileiro que terá maior fama nos anos 2000, Edir Macedo é tão internacional e cosmopolita quanto os Rolling Stones, porém ele não deixa de bicar na cor local da umbanda: o exu, o transe, a possessão, os irmãos do espaço.
Foi Martinho Lutero o autor do famoso racha midiático: ou se é evangélico, ou católico. Deus e o diabo. Dizem até que o capiroto um dia, em Eislenben, 1546, mostrou a bunda ao venerando Lutero, a fim de exasperar o reformador protestante.
Antes de ser mensagem, a religião é medium. Jesus Cristo, o primeiro mass media da história. Resulta daí a seguinte conclusão: o pastor Edir Macedo se deu bem com a conexão efetiva entre dinheiro e transe místico.
Eis o segredo: Cristo-moeda.
A mídia, a moeda, a mediação. O complexo sócio-místico da sociedade brasileira: a religião no povo. A unidade religiosa contemporânea dos ex-descendentes de escravos. Antes de existir Karl Marx, filho prodígio de pregador alemão, o padre mulato Antônio Vieira alegorizava a pecúnia católica na Colônia do século 17: servir-se do dinheiro para servir a Deus ou servir-se de Deus para servir ao dinheiro? O crédito do Além, o dinheiro do espírito, posto que a palavra crédito vem do latim credere, que dá no acreditar. Believe it or not.
Traduzindo para o léxico da TV autóctone: "acredite. se quiser". Ou senão esta pérola da anacolutia: "Fala que eu te escuto".
A grana, o pobre crente a pegará depois no outro mundo, justificando assim o dízimo pago com júbilo à empresa privada.
Aleluya!
Roger Bastide, o babalorixá das ciências sociais da USP, compreendeu como nenhum outro a infra-estrutura econômica da fé e do milagre na sociedade brasileira depois de 1945: o dólar made in transe.
O espírito do capitalismo das igrejas pentecostais é o fac-símile da ética do protestantismo anglo-saxônico videofinanceiro.
A peleja fáustica do pastor Edir Macedo é travada simultaneamente contra a Igreja Católica e a rede Globo. Midiologicamente falando, é inegável que ele goza de enorme vantagem em dispor de um canal de TV para reforçar suas seitas na sociedade civil. É o mesmo esquema do antigo cristianismo primitivo. A organização em seitas foi a primeira forma histórica de organização de massas. Assim, do ponto de vista institucional, o medium do pastor detém o controle dos sovietes religiosos espalhados em grupos civis por todo o Brasil, interferindo na arquitetura das cidades e nos negócios imobiliários.
Destarte, não há incômodo maior do que, de repente, tornar-se vizinho de uma banda funk pentecostal, em cujas ruidosas assembléias Deus é surdo, a julgar pela oblação aos berros dos beatos acompanhados de guitarra elétrica e bateria.
Em Edir Macedo não há paidéia (educação, Ciepschool), mas sim comunicação ágrafa-popgospel. Não é senão por isso que aí faz muito sucesso a sonoridade de direita do rei Roberto Carlos.
O espanhol Cervantes dizia que a morte é surda. No capitalismo popular hodierno a TV faz o governo. Moral da história: a batalha pela audiência (telenovela versus Ratinho) poderá determinar o resultado eleitoral de 1998. Enfim, estamos sem mato e com cachorro!




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