São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2000


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TEATRO
Medo da vulgaridade empola a linguagem de Tchecov

SÉRGIO DE CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando da estréia de "O Jardim das Cerejeiras", de Tchecov, no Teatro de Arte de Moscou, Stanislavski conta que decidiu homenagear o autor com um presente. Andou por antiquários da cidade e enfim comprou uma velha peça de tecido, "magnificamente costurada", supondo que, na falta de melhor achado, ao menos estaria dando qualquer coisa de artístico. Tchecov, depois da festa, chamou Stanislavski à parte: "Ouça, isto é maravilhoso, mas deveria estar num museu".
"E que presente lhe agradaria mais?... Nos ensine para uma próxima vez", retrucou Stanislavski.
"Uma ratoeira. Veja uma coisa: é preciso exterminar os ratos", disse Tchecov e gargalhou.
Esta anedota vem a propósito da edição de duas das grandes peças de Tchecov, "A Gaivota" e "O Cerejal", segundo a tradução da crítica teatral Barbara Heliodora. Acredito que o leitor terá sensação semelhante à do homenageado: não está mal, é maravilhoso, mas seria melhor se fosse coisa mais útil.
Invoco este critério artístico tão gostoso pelos encrispamentos que ainda causa -o da utilidade- porque era nesse sentido que se vinha encaminhando a coleção "Em Cena", da Edusp.
Começou com duas belas peças inéditas entre nós, o "Ivanov", de Tchecov, em tradução de Arlete Cavaliere e de Eduardo Tolentino, e "Crimes e Crimes", de Strindberg, em versão do professor Jacó Guinsburg.
E eis que rompendo a expectativa de outras úteis exceções, lá surgem de novo as tais peças de fino tecido, visando o agrado sem risco, só que oferecidas com o espírito de quem envia uma coroa de flores.
Como não sei ler em russo, não vou discutir em detalhes as escolhas da tradutora. Mas como Barbara Heliodora também não sabe, não devia ter se metido a besta. Só numa folheada já se nota que seu cotejamento, feito do inglês e do francês, suprime interjeições, homogeneíza falas, dificulta os nomes, troca cores de sapatos, além de se equivocar na opção pelo título "O Cerejal". Por temer a vulgaridade, empola a linguagem de Tchecov.
Ao idealizar a atitude poética, desmaterializa as particularidades reveladoras. Retrocesso em relação às versões de Tchecov anteriores que, não isentas de reparos, cumpriam a tarefa da divulgação sem a presunção de julgar supérfluo o exame do original.
Penso que a coleção podia ter cogitado, por exemplo, publicar a versão pouco conhecida de Eugênio Kusnet para "O Jardim das Cerejeiras", que contaria -à parte suas virtudes- com a vantagem de ter sido feita na proximidade do palco.
Com raras exceções (como o "Ivanov" do Grupo Tapa), Tchekhov é um dos autores mais maltratados pelas gentes de teatro no Brasil, que dele se apropriam com uma avidez grotesca.
Tornou-se substrato para a vaidade das nossas prima-donas oficiais e alternativas, desejosas de fazer uma coisinha "artística" como compensação alienada da outra maior alienação televisiva. Ou ainda se tornou exercício linguajeiro dos "sempre-de-preto" que reincidem na vasta desinteligência de se identificar com os simbolismos "gaivóticos" de Treplev, infelizmente sem a mesma coragem de estourar os miolos.
Stanislavski escreveu que na época das personagens de Tchecov, em meio à asfixiante estagnação do ambiente e das situações, não existia terreno para a ascensão revolucionária. E que só em algum lugar debaixo do chão, nos subterrâneos, preparavam-se e acumulavam-se "forças para os golpes temíveis".

Marteladas
O divertido da obra de Tchecov é que, mesmo quando ela aparece envolvida em rendas de antiquário, ela própria se encarrega de dar marteladas na cabeça dos supostos tchecovianos, tanto nos sequiosos do reencantamento desalienante como em seus pares, os da labirintite da falsa multiplicidade.
Aquele rumor dos porões é impossível de se ignorar, por mais que se tente fazê-lo ao suprimir personagens ou recapear dissonâncias. São peças que, revendo minha opinião, acabam hoje úteis de qualquer jeito.
Têm a utilidade que Hamlet viu no teatro, a de capturar a má consciência, e poderiam ser assim chamadas de "ratoeiras".


 
Livro: O Cerejal
  Autor: Anton Tchecov
Tradutora: Barbara Heliodora
Editora: Edusp
Quanto: R$ 12 (112 págs.)

 
Livro: A Gaivota
  Autor: Anton Tchecov
Tradutora: Barbara Heliodora
Editora: Edusp
Quanto: R$ 12 (116 págs.)


Sérgio de Carvalho é professor de literatura dramática no departamento de artes cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do grupo teatral Companhia do Latão.


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