São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2000


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QUADRINHOS
Bruce Eric Kaplan desenha fábulas minimalistas do casamento
As pequenas e grandes resignações da nossa vida

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O enquadramento é enviesado, caindo para a direita. Sofá, mesinha, quadro, em traços precisos e mínimos: linhas pretas, sem textura, só pequenas sombras blocadas em preto.
Pela janela aberta, a mulher (meia-idade, acima do peso) grita, com a mão direita em concha e a esquerda em desespero: "Espera! Volta! Eu só estava brincando quando disse que queria ser feliz!".
Este cartum pode ser visto em contraponto com outro do mesmo autor: mulher (meia-idade, acima do peso) ao telefone, de costas para a janela: "Eu já falei que ele tem de aprender a se soltar". Na janela, as mãos e cabeça de um homem (meia-idade, careca), pendurado do lado de fora, olhando para a mulher.
Qualquer desenho, nesta coleção de 182, serviria de exemplo da arte decifrável de Bruce Eric Kaplan, mais conhecido como BEK pelos leitores da revista "The New Yorker", onde comparece, com raras exceções, todas as semanas. Reunidos em livro, eles se falam -não cansam de falar-, e a comédia ganha novas harmonias e dissonâncias.
"Ninguém Que Você Conheça", define o título. São os casais frustrados e os frustrados solitários; os empregados oprimidos e os patrões infantis; as crianças entediadas e os idosos sem fôlego; homens e mulheres compartilhando as pequenas e grandes resignações de uma vida burguesa qualquer.
A esta companhia soma-se, com especial destaque, um elenco de animais, que fazem do cartum um novo gênero de fábula, e de BEK nosso inesperado Esopo.
"Na minha experiência, latir o tempo todo ajuda a diminuir o sofrimento", diz um cachorro para outro, no chão da sala. E a ratinha para o ratinho: "Queijo é só um substituto para o amor que você nunca me deu".
O desenho, como sempre, é só linhas, massa branca e sombra preta. E essa redução artificial, até um limite último dos meios, parece feita sob medida para a comédia clássica que se cristaliza em cada imagem e em cada fala.
O enquadramento é virtuosístico como naquele primeiro desenho, onde é a inclinação para a direita que nos faz pressentir, de imediato, que dessa janela não se sai, se cai.
E a composição acomoda personagens e fundo, num sistema de ecos; as linhas pintadas de um avião, por exemplo, do lado de fora da sala de espera, respondem, indiferentes e retas, às listras curvas dos besouros amuados, escutando o anúncio de que o "vôo do besouro" não vai mais sair.
Este cartum dá mostra de um outro subgênero, uma espécie de teatro do absurdo, onde o que era só uma figura, ou metáfora (no caso, o nome de uma peça musical famosa), vem se transformar em imagem literal. Mas literal do quê? Quando a gente se depara com uma inversão da inversão da inversão, não é mais possível seguir tantos desvios. Nem por isso se deixa de perceber que os besouros (ou peixes, ovelhas, gatos, leões) são tudo, menos besouros, peixes, ovelhas, gatos e leões.
"Tudo" talvez seja exagero. O universo de Kaplan é a classe média, não necessariamente americana, mas com fortes traços de lá. Que ele também já radiografou, em versão mais popular, nos roteiros que escrevia para a série de TV "Seinfeld" (tradução literal, barbarizando o sobrenome alemão: "campo do ser").
Esse campo se lavra ou escalavra de um jeito especial nas tragicomédias do casamento, tema predileto dos cartuns. Incompreensões, falências, falácias e crueldades compõem uma trama quase impossível de destramar. "O princípio básico de um casamento é a conversa", dizia o poeta seiscentista Milton. A capacidade de um casal de ter prazer na companhia um do outro, um prazer da entrega, sem conceitos, não é contradito pela conversa infinita, pelo contrário. Ela é a condição de inteligibilidade mútua, e da imaginação que se renova.
E é essa conversa que se perdeu, nas tristezas melodramáticas da mulher (meia-idade, acima do peso) que quer trocar o seu perfume suave "de desconforto e vaga infelicidade", ou do homem (meia-idade, careca) escondido atrás do jornal, no sofá suportável do apartamento insuportável, num verão insuportável ao lado da suportável ou insuportável esposa. A mulher solitária fala ao telefone, na cozinha arrumada, agradecendo "todo esse tempo de tranquilidade e descanso" exceto "dentro da minha cabeça". Precisa dizer mais?
Não quando já se diz tanto, com tão pouco. Impiedade e compaixão são as marcas do fabulista. A força da percepção pode estar associada, comicamente, à força do sofrimento. Mas BEK tem um coração capaz de desenhar pombos e bebês, tanto quanto tubarões, Frankensteins e socialites; mesmo quando os primeiros chegam a soar como uma tradução, ou premonição dos segundos.
A inversão é a regra, não só para o mal, mas para o bem. O que quer uma mulher, e o que um homem quer, algo sempre tão distante nesses desenhos e diálogos, seja por inalcançável ou perdido, está na vizinhança imaginada e incansavelmente reeditada por trás da arte de Bruce Eric Kaplan.
Essa é sua fonte, como a de todos nós, e é de lá que se tira força para rir desses cartuns, prescrição de tudo o que não deve ser a vida de ninguém que você conhece.


   
Livro:
No One You Know
  Autor: Bruce Eric Kaplan
Editora: Simon & Schuster
Quanto: US$ 13,95
Onde encomendar: www.amazon.com e www.barnesandnoble.com


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