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QUADRINHOS
Bruce Eric Kaplan desenha fábulas minimalistas do casamento
As pequenas e grandes resignações da nossa
vida
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
O enquadramento é enviesado, caindo para a direita. Sofá,
mesinha, quadro, em traços precisos e mínimos: linhas pretas,
sem textura, só pequenas sombras blocadas em preto.
Pela janela aberta, a mulher (meia-idade, acima do peso) grita, com a
mão direita em concha e a esquerda em desespero: "Espera! Volta!
Eu só estava brincando quando disse que queria ser feliz!".
Este cartum pode ser visto em contraponto com outro do mesmo autor: mulher
(meia-idade, acima do peso) ao telefone, de costas para a janela: "Eu
já falei que ele tem de aprender a se soltar". Na janela, as mãos
e cabeça de um homem (meia-idade, careca), pendurado do lado de
fora, olhando para a mulher.
Qualquer desenho, nesta coleção de 182, serviria de exemplo
da arte decifrável de Bruce Eric Kaplan, mais conhecido como BEK
pelos leitores da revista "The New Yorker", onde comparece, com raras
exceções, todas as semanas. Reunidos em livro, eles se falam
-não cansam de falar-, e a comédia ganha novas harmonias
e dissonâncias.
"Ninguém Que Você Conheça", define o título.
São os casais frustrados e os frustrados solitários; os
empregados oprimidos e os patrões infantis; as crianças
entediadas e os idosos sem fôlego; homens e mulheres compartilhando
as pequenas e grandes resignações de uma vida burguesa qualquer.
A esta companhia soma-se, com especial destaque, um elenco de animais,
que fazem do cartum um novo gênero de fábula, e de BEK nosso
inesperado Esopo.
"Na minha experiência, latir o tempo todo ajuda a diminuir o sofrimento",
diz um cachorro para outro, no chão da sala. E a ratinha para o
ratinho: "Queijo é só um substituto para o amor que você
nunca me deu".
O desenho, como sempre, é só linhas, massa branca e sombra
preta. E essa redução artificial, até um limite último
dos meios, parece feita sob medida para a comédia clássica
que se cristaliza em cada imagem e em cada fala.
O enquadramento é virtuosístico como naquele primeiro desenho,
onde é a inclinação para a direita que nos faz pressentir,
de imediato, que dessa janela não se sai, se cai.
E a composição acomoda personagens e fundo, num sistema
de ecos; as linhas pintadas de um avião, por exemplo, do lado de
fora da sala de espera, respondem, indiferentes e retas, às listras
curvas dos besouros amuados, escutando o anúncio de que o "vôo
do besouro" não vai mais sair.
Este cartum dá mostra de um outro subgênero, uma espécie
de teatro do absurdo, onde o que era só uma figura, ou metáfora
(no caso, o nome de uma peça musical famosa), vem se transformar
em imagem literal. Mas literal do quê? Quando a gente se depara
com uma inversão da inversão da inversão, não
é mais possível seguir tantos desvios. Nem por isso se deixa
de perceber que os besouros (ou peixes, ovelhas, gatos, leões)
são tudo, menos besouros, peixes, ovelhas, gatos e leões.
"Tudo" talvez seja exagero. O universo de Kaplan é a classe média,
não necessariamente americana, mas com fortes traços de
lá. Que ele também já radiografou, em versão
mais popular, nos roteiros que escrevia para a série de TV "Seinfeld"
(tradução literal, barbarizando o sobrenome alemão:
"campo do ser").
Esse campo se lavra ou escalavra de um jeito especial nas tragicomédias
do casamento, tema predileto dos cartuns. Incompreensões, falências,
falácias e crueldades compõem uma trama quase impossível
de destramar. "O princípio básico de um casamento é
a conversa", dizia o poeta seiscentista Milton. A capacidade de um casal
de ter prazer na companhia um do outro, um prazer da entrega, sem conceitos,
não é contradito pela conversa infinita, pelo contrário.
Ela é a condição de inteligibilidade mútua,
e da imaginação que se renova.
E é essa conversa que se perdeu, nas tristezas melodramáticas
da mulher (meia-idade, acima do peso) que quer trocar o seu perfume suave
"de desconforto e vaga infelicidade", ou do homem (meia-idade, careca)
escondido atrás do jornal, no sofá suportável do
apartamento insuportável, num verão insuportável
ao lado da suportável ou insuportável esposa. A mulher solitária
fala ao telefone, na cozinha arrumada, agradecendo "todo esse tempo de
tranquilidade e descanso" exceto "dentro da minha cabeça". Precisa
dizer mais?
Não quando já se diz tanto, com tão pouco. Impiedade
e compaixão são as marcas do fabulista. A força da
percepção pode estar associada, comicamente, à força
do sofrimento. Mas BEK tem um coração capaz de desenhar
pombos e bebês, tanto quanto tubarões, Frankensteins e socialites;
mesmo quando os primeiros chegam a soar como uma tradução,
ou premonição dos segundos.
A inversão é a regra, não só para o mal, mas
para o bem. O que quer uma mulher, e o que um homem quer, algo sempre
tão distante nesses desenhos e diálogos, seja por inalcançável
ou perdido, está na vizinhança imaginada e incansavelmente
reeditada por trás da arte de Bruce Eric Kaplan.
Essa é sua fonte, como a de todos nós, e é de lá
que se tira força para rir desses cartuns, prescrição
de tudo o que não deve ser a vida de ninguém que você
conhece.
Livro: No One You Know
Autor: Bruce Eric Kaplan
Editora: Simon & Schuster
Quanto: US$ 13,95
Onde encomendar: www.amazon.com
e www.barnesandnoble.com
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