São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2001

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MÚSICA ERUDITA

Há algo de certo no reino da Dinamarca

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Um só Deus? Na religião da música, ele é tantos quantos são os seus profetas. Como Handel e Mozart, por exemplo, tão bem tocados pelo Concerto Copenhagen e o Coro da Capela Real, anteontem, na Sala São Paulo.
Estranho roteiro: no dia 27 de junho de 1743, algumas centenas de ingleses vão ao campo de batalha de Dettingen. Para comemorar o fato de que mataram mais franceses do que esses mataram ingleses, o rei Jorge 2º encomenda a George Frideric Handel (1685-1759) o "Dettingen Te Deum", em ré maior.
Música alguma justifica a morte; nem morte alguma, a música. Mas é dessa equação impossível que surge uma das obras religiosas mais vibrantes de todo o período barroco.
Handel é o grande mestre das arquiteturas, um engenheiro de superfícies e proporções. Para as platéias de hoje, não é habitual cultivar uma música como essa tão confiante na sua mundanidade e fazendo dela um instrumento da sabedoria. Mas a saúde de Handel é saúde para todos nós e soou como um bálsamo nas vozes dos dinamarqueses, regidos por Ebbe Munk.
Vozes só de homens: um coro de adultos e meninos, à maneira do barroco, acompanhados pela boa orquestra de instrumentos antigos (o desastre do trompete sem válvulas não afeta o conjunto: é um instrumento do demônio e serve para lembrar nossa humanidade).

Regência sem maneirismos
Munk rege Handel handelianamente, sem carregar de sentidos o que é da ordem do espetáculo. Mantém o tempo todo uma elevação sem maneirismos, sem hipérboles, mas também sem minimizar os golpes de teatro (silêncios, modulações, passagens a capela, mudanças de métrica). Rege dentro e fora da música, como o próprio Handel parece estar, nessa exuberância de coisas bem compostas e bem postas.
A parte do leão fica mesmo com a leoa, no caso, a solista contralto Signe Asmussen, representante de uma nova geração de cantores: jovem, descolada, cantando sem fazer de si o centro do universo. Todo o quarteto de solistas cabe nessa descrição. São instrumentistas da voz; e compensam a falta de brilhos mais virtuosísticos com uma simpatia musical que soa especialmente bem nesse repertório.

Brilho
Na "Missa da Coroação", de Mozart (1756-91), quem brilhou foi a soprano Marianne Karlberg, tirando os pecados do mundo com suas plumas pretas e o cabelo pintado de cobre. De Handel a Mozart, a viagem é longa: como é sempre longa a passagem do que é exterior para o que é interior. Só se completaria nas obras incompletas que são a "Missa em Dó Menor" e o "Réquiem".
Mas, mesmo aqui, nessa "Missa" escrita aos 23 anos, já se escuta um anúncio da transubstanciação do barroco, celebrado ambiguamente num idioma que é e não é da igreja. (É da ópera, também.)
Munk e o Concerto Copenhagen podem não ser os intérpretes mais exuberantes da música antiga (a exuberância mora na Itália), ou transcendentais (França, Espanha), mas nessa "Missa" bastou o sol grave dos incríveis tímpanos no "Kyrie", o "g" como "guê", os "passus" compassados antes da ressurreição. A música diz tudo, até ou exatamente porque não consegue dizer; e uma interpretação tão aberta só reforça as cargas implícitas de significado, sem forçar nada.
Entre Handel e Mozart, o Coro de Meninos de Copenhagen cantou um "Florilégio" de canções escandinavas. A maior parte lembra festival de coros, trocando só a língua.
Mas o início da primeira, de Niels la Cour (1944), acordes dissonantes, canto a boca fechada -ou a última, de Carl Nielsen (1865-1931), quinteto num camarote, coro no palco- fizeram a respiração parar em 1.500 pulmões, apesar do chavão. E o Coro da Capela Real (só adultos) transformou uma "Serenata", de Lange-Müller (1850-1926), em música de gente grande.
Lindo concerto. Duro depois é sair da Sala São Paulo e assistir ao coro de meninos da rua Helvétia. Handel e Mozart, tende piedade. Como a Dinamarca é longe.


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