São Paulo, quinta-feira, 10 de maio de 2001

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GASTRONOMIA

Paraty está grávida

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

A notícia de hoje é que Paraty está grávida. Foi tanto calor no verão que o verde se encharcou de sol, saturou, e agora está farto, pojado, satisfeito.
As vacas, nunca tão lúcidas, não se mexem nos pastos montanhosos, são a coisa mais linda, esculturas imóveis, algumas também prenhes. O leite tem gosto, é forte.
O mar já não sabe o que fazer de tanto peixe que nada em coreografias graciosas de filme de Esther Williams e passa pelas iscas dos anzóis com o desprezo próprio de quem já jantou. Pelo jeito, não vamos comer sororocas nesta estação.
É um mar com consistência de bouillabaisse grossa. Um caldo frio e borbulhante de frutos do mar, camarões, lulas, tainhas, filés, postas, dorsos de golfinho, mariscos.
Apesar de tanta placidez, há um certo erotismo no ar, uma sensualidade periférica, frouxa, como um orgasmo delicado e contínuo na superfície de tudo. Até os capins estão dando flor. Modestamente explodem em fogos de artifício de palha, estrelas e bolas de plumas, mandruvás peludos pendentes, flores secas e duras, trigo de Deus em céu aberto.
As estradas de terra atravessam a fumaça dos fogos das queimadas, e o cheiro é bom, de mundo cozinhando, e as nuvens são de creme chantilly batido com açúcar, gordas e gostosas.
Os abacates estão polidos à mão, redondos, enormes. Ótimos para serem comidos em saladas ou com chili picante ou, por incrível que pareça, junto a uma bela posta de peixe ensopada, com coentro, tomates e etc. e tal.
Há jambos, mas não da cor de mulatas. São vermelhos e ruins. As laranjinhas da China encostam no chão, as mexericas-do-rio fazem a alegria do café da manhã e, hoje à noite, houve um assalto a uma árvore delas, no bananal. Raparam tudo. As suspeitas recaíram sobre uns sujeitos caçadores de gambás, uma história meio esquisita. Ai, ai, ai.
A casa da Julia Mann, mãe do Thomas Mann, fica ali, entre o morro e o mar. Fiquei me matando para saber o que lhe grudara nos genes, o que transmitira ao filho desta paisagem poderosa de sombra e de luz. Já ia desistindo quando me lembrei, ora (tossezinha envergonhada), da montanha. Montanha misteriosa, no momento fechada para balanço. Um mico dourado veio nos espiar, mastigando qualquer coisa, nem um pouco extinto.
As meninas que no verão saracoteavam em seus biquínis, acreditem se quiser, fazem crochê em frente das casas da roça. Crochê!
A represa, de longe, é um verde só, samambaias, grotão, muita sombra e chão sarapintado de sol. Os gansos andaram nadando por aqui e deixaram penas brancas que a qualquer vento se alevantam em vôo breve e vão cair mais longe, uma riqueza. Ninguém pensa em comer os gansos, só minha nora chinesa e eu, cúmplices, loucas para descobrir o segredo daqueles "foies" magros. Loucas para rechear aqueles pescoços, mas fica tudo na vontade, uma moleza, uma preguiça!
As galinhas, no entanto, cortam qualquer barato lírico-grávido, correndo de lá para cá, fugindo eternamente da faca, com uns olhinhos míopes e frustrados. Pois vou fazer uma delas, como manda o novo figurino. Vou matá-la e, depois de limpa, mergulhá-la em água com sal por quatro horas. É o único jeito de salgar uma galinha para assar. Secá-la antes, não esquecer de secar antes de assar.
Descemos à cidade. Vou pouco a Paraty atualmente, não gosto mais, acabou-se o que era doce, vou ficando minha mãe, irritada, tropeçando nas pedras... Não tem mais jeito, é voltar para a roça, enfarada, nada como a comidinha de casa, tão simples, quase grátis, sem couvert musical.
E ainda tem a internet, a mais grávida de todas, fértil e generosa. O Luiz Horta insiste em fazer funcionar nossos miolos alagados de sol com profundas dúvidas filosóficas, tais como: "Existe sopa de letrinhas em outros alfabetos? Cirílico, kanji, chinês, japonês, hebraico? Hebraico é só ponto, com certeza fica uma sopa de bolinhas, e os meninos lêem palavras flutuantes... Olha! Um Aleph!".
Huum, huumm. Devagar, quase parando. Queria tatuar esta paisagem na alma, para sempre.

E-mail : ninahort@uol.com.br


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