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GASTRONOMIA
Paraty está grávida
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
A notícia de hoje é que Paraty está grávida. Foi tanto
calor no verão que o verde se encharcou de sol, saturou, e agora
está farto, pojado, satisfeito.
As vacas, nunca tão lúcidas, não
se mexem nos pastos montanhosos, são a coisa mais linda, esculturas imóveis, algumas também
prenhes. O leite tem gosto, é forte.
O mar já não sabe o que fazer de
tanto peixe que nada em coreografias graciosas de filme de Esther Williams e passa pelas iscas
dos anzóis com o desprezo próprio de quem já jantou. Pelo jeito,
não vamos comer sororocas nesta
estação.
É um mar com consistência de
bouillabaisse grossa. Um caldo
frio e borbulhante de frutos do
mar, camarões, lulas, tainhas, filés, postas, dorsos de golfinho,
mariscos.
Apesar de tanta placidez, há um
certo erotismo no ar, uma sensualidade periférica, frouxa, como
um orgasmo delicado e contínuo
na superfície de tudo. Até os capins estão dando flor. Modestamente explodem em fogos de artifício de palha, estrelas e bolas de
plumas, mandruvás peludos pendentes, flores secas e duras, trigo
de Deus em céu aberto.
As estradas de terra atravessam
a fumaça dos fogos das queimadas, e o cheiro é bom, de mundo
cozinhando, e as nuvens são de
creme chantilly batido com açúcar, gordas e gostosas.
Os abacates estão polidos à
mão, redondos, enormes. Ótimos
para serem comidos em saladas
ou com chili picante ou, por incrível que pareça, junto a uma bela
posta de peixe ensopada, com
coentro, tomates e etc. e tal.
Há jambos, mas não da cor de
mulatas. São vermelhos e ruins.
As laranjinhas da China encostam
no chão, as mexericas-do-rio fazem a alegria do café da manhã e,
hoje à noite, houve um assalto a
uma árvore delas, no bananal. Raparam tudo. As suspeitas recaíram sobre uns sujeitos caçadores
de gambás, uma história meio esquisita. Ai, ai, ai.
A casa da Julia Mann, mãe do
Thomas Mann, fica ali, entre o
morro e o mar. Fiquei me matando para saber o que lhe grudara
nos genes, o que transmitira ao filho desta paisagem poderosa de
sombra e de luz. Já ia desistindo
quando me lembrei, ora (tossezinha envergonhada), da montanha. Montanha misteriosa, no
momento fechada para balanço.
Um mico dourado veio nos espiar, mastigando qualquer coisa,
nem um pouco extinto.
As meninas que no verão saracoteavam em seus biquínis, acreditem se quiser, fazem crochê em
frente das casas da roça. Crochê!
A represa, de longe, é um verde
só, samambaias, grotão, muita
sombra e chão sarapintado de sol.
Os gansos andaram nadando por
aqui e deixaram penas brancas
que a qualquer vento se alevantam em vôo breve e vão cair mais
longe, uma riqueza. Ninguém
pensa em comer os gansos, só minha nora chinesa e eu, cúmplices,
loucas para descobrir o segredo
daqueles "foies" magros. Loucas
para rechear aqueles pescoços,
mas fica tudo na vontade, uma
moleza, uma preguiça!
As galinhas, no entanto, cortam
qualquer barato lírico-grávido,
correndo de lá para cá, fugindo
eternamente da faca, com uns
olhinhos míopes e frustrados.
Pois vou fazer uma delas, como
manda o novo figurino. Vou matá-la e, depois de limpa, mergulhá-la em água com sal por quatro
horas. É o único jeito de salgar
uma galinha para assar. Secá-la
antes, não esquecer de secar antes
de assar.
Descemos à cidade. Vou pouco
a Paraty atualmente, não gosto
mais, acabou-se o que era doce,
vou ficando minha mãe, irritada,
tropeçando nas pedras... Não tem
mais jeito, é voltar para a roça, enfarada, nada como a comidinha
de casa, tão simples, quase grátis,
sem couvert musical.
E ainda tem a internet, a mais
grávida de todas, fértil e generosa.
O Luiz Horta insiste em fazer funcionar nossos miolos alagados de
sol com profundas dúvidas filosóficas, tais como: "Existe sopa de
letrinhas em outros alfabetos? Cirílico, kanji, chinês, japonês, hebraico? Hebraico é só ponto, com
certeza fica uma sopa de bolinhas,
e os meninos lêem palavras flutuantes... Olha! Um Aleph!".
Huum, huumm. Devagar, quase parando. Queria tatuar esta
paisagem na alma, para sempre.
E-mail : ninahort@uol.com.br
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