São Paulo, segunda-feira, 10 de maio de 2004

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DANÇA

Balé da Cidade de SP marca seu espaço internacional

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Na antiga fábrica de carros da Volkswagen, em Autostadt (cidade do carro), o movimento tomou conta de tudo. Torres de automóveis -da própria Volkswagen, da Lamborghini, da Audi, da Bentley e da Skoda- compõem um ambiente futurista. E no caminho para chegar às velhas torres da fábrica há uma tela, onde se vê dança todo o tempo.
Desde 2003, em Wolfsburg (a 100 km de Berlim), acontece o "Movimentos Internationales TanzFestival", que neste ano abriu a temporada, na última quinta, com o Balé da Cidade de São Paulo, e continua com a companhia americana Bill T. Jones/ Arnie Zane Dance Company, seguida da Cloud Gate Dance Theatre de Taiwan e do Tokyo Ballet.
Tudo é montado para o evento. Em meio à amplidão do espaço, com sua coleção de engrenagens, bobinas gigantescas, tubos etc., abre-se uma platéia para 900 espectadores. A diversidade de linguagens e estilos a que se propõe o festival serve ao objetivo explícito de fazer dele uma referência no cenário internacional.
Na quinta e na sexta, o Balé da Cidade apresentou "Máscaras do Tempo", do iraniano Gagik Ismailian, "LAC", do brasileiro Sandro Borelli, "Adagietto", do argentino Oscar Araiz, e "Z", da senegalesa Germaine Acogny. Ontem e sábado, dançou outro programa.
Os pontos inspirados da noite de quinta foram os duos. "Adagietto", com música da "Quinta Sinfonia" de Mahler, foi dançado por Luciana Porta e Milton Kennedy. Ali se viu o que é suavidade e leveza da dança neoclássica, privilegiando as linhas alongadas do corpo, a relação harmoniosa dos gestos com o espaço e a dramaticidade oculta no encontro dos corpos, levados pela música. Nem todos os acentos da música coincidem com os da dança: por isso mesmo é que um reverbera no outro, acolhidos no tempo justo da coreografia.
Já "LAC", um duo com música de Tchaikovski (o "Adágio" do segundo ato do "Lago dos Cisnes"), nos leva para o campo da irreverência, da inventividade e do humor. Em cena, o encontro de duas criaturas para o acasalamento, até que no final o macho é morto. No início, Andréa Tomioka está sozinha, com a luz como parceiro, desvendando sombras e nuances. Até que entra Gustavo Lopes. Dos corpos quase nus (calcinha e cueca), com venda (ou bico) na boca, Sandro Borelli retira então movimentos e sensações que nos dirigem ao centro das coisas: prazeres e desprazeres, fisicalidade e emoção, intensificadas na lente de cada momento.
Os gestos são por vezes sinuosos e malemolentes, por outras cortados e acentuados -um corpo passa pelo outro e deixa no espaço o rastro da sua existência. Se cada acento causa uma ruptura com a linguagem tradicional dessa dança tão conhecida, a variedade das reinvenções ficará também para sempre na memória desse novo movimento dos cisnes.
Os encontros e desencontros em "Máscaras do Tempo" são de outra natureza. Nessa coreografia tecnicamente muito difícil (com giros seguidos, quedas e movimentos acentuados e angulosos), homens e mulheres se vêem diante do caos depois da guerra.
A própria dificuldade de ultrapassar os limites do corpo numa dança tão árdua já impõe um ritmo que faz alusão aos conflitos. Desespero e esperança, brutalidade e consolo marcam os gestos. A música do Dead Can Dance, com canto em aramaico, entrecortada pelo silêncio e pelo som dos corpos no espaço, cria uma ambiência de mantra, um lamento de dentro do qual emerge a força da dança. Sem dramaticidade excessiva, sem apelos, Ismailian cria relações de grande tensão, para narrar o que está para além de todos os excessos.
Bem noutro plano fica "Z" (de Zumbi), uma coreografia no limite do simplório, tematizando a escravidão e a liberdade. Movimentos ondulatórios do tronco e da bacia não vão muito além de sedução para turista; e os chicotes e penitências, no fundo, não passam também de macumba para europeu.
A imprensa local mencionou com entusiasmo a energia dos corpos brasileiros e a capacidade técnica da companhia. Dançando para uma platéia lotada, com os ingressos esgotados em todas as noites e a presença de muitos jornalistas e vários programadores de outros festivais, o Balé da Cidade faz bonito e marca seu espaço no cenário internacional.


Inês Bogéa viajou a convite do Balé da Cidade


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