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BERNARDO CARVALHO
Ponto cego
Você nunca sabe se um filme
de Manoel de Oliveira é irônico ou ingênuo, reacionário ou
libertário, inteligente ou burro,
simplista ou muito mais complexo do que você pode imaginar.
Você nunca sabe se é de propósito
ou por acaso. Se é crítica ou apologia. Quando é sério e quando é
escárnio. E é essa ambigüidade
que permite a adesão de espectadores em tudo o mais divergentes.
Há alguns anos, deixei um amigo português pasmo ao me referir
à ironia de Manoel de Oliveira.
Falávamos de "Non, ou a Vã Glória de Mandar" (1990). O filme
trata da história de Portugal desde as batalhas travadas pelas tribos lusitanas contra os romanos
até a guerra colonial, na África.
Para o espectador acostumado às
superproduções históricas de
Hollywood, não há como não estranhar o aspecto mambembe
das cenas de batalha ou as ações
canhestras dos governantes, vistas depois como atos heróicos e
míticos na constituição da pátria
-o que eu, como grande admirador do cineasta português, só podia interpretar como a mais ácida
ironia.
A representação da glória nacional era pobrezinha. E isso só
podia ser intencional. O que o filme contava era uma história de
fracassos. O amigo português me
garantiu que era justo o contrário: ou eu era cego ou estava vendo demais. Sob a reflexão a propósito da vaidade nacional e da
ilusão da guerra, o que haveria
no fundo era um misto de complexo de inferioridade e sonho de
grandeza: a exaltação da nação
como um mito trágico.
Não era possível. Me lembro de
ter ficado maravilhado quando
assisti à adaptação de sete horas
que Manoel de Oliveira fez da peça de Claudel "Le Soulier de Satin" ("O Sapato de Cetim", 1985).
A representação tinha um tom
"gauche", incongruente, que deixava tudo um pouco gozado. A
superprodução, financiada com
dinheiro francês, muitas vezes parecia negligente, capenga, apesar
da exuberância, o que produzia
uma sensação de distanciamento
por meio de um humor muito peculiar, um sarcasmo imprevisto.
Era como se Oliveira tivesse aportuguesado a "qualidade francesa".
A lembrança de outros filmes
do diretor em que o sarcasmo já
não deixa margem para dúvidas
-à exemplo do irreverente "O
Passado e o Presente" (1971),
adaptação da peça do engraçadíssimo Vicente Sanches, ou do
delirante "Os Canibais" (1988)-
bastou para me tranqüilizar por
um tempo.
Mas só até um texto excelente,
publicado há alguns anos no caderno Mais! ("Carta Aberta a
Manoel de Oliveira", do historiador Luiz Felipe de Alencastro),
me alertar para um aspecto da
obra do diretor português que eu
não tinha levado em conta: quando trata da relação de Portugal
com as ex-colônias da África, o cineasta omite e ignora o tráfico de
escravos, como se isso nunca tivesse existido, como se não tivesse
sido o fundamento da relação da
metrópole com suas colônias africanas durante séculos.
O cineasta ousado também pode ser um homem conservador. E
há uma dimensão ideológica por
demasiado explícita em alguns
dos seus filmes, que pede um tipo
de comentário um tanto antiquado -e que alguns poderão considerar redutor.
"Um Filme Falado", em cartaz
em São Paulo, é obra de um velho
cineasta. E não só pela idade do
diretor (Oliveira tem 98 anos). É
um belo filme, uma alegoria nostálgica, que chora o fim de uma
civilização (a ocidental).
Uma professora portuguesa e
sua filha pequena embarcam, em
Lisboa, num navio que as levará
até o pai da menina, em Bombaim, na Índia. A professorinha
de história aproveita a viagem
para dar aulas à filha. Conforme
o navio faz escalas em portos do
Mediterrâneo, ela vai contando à
menina a história do Ocidente. É
mais um lamento, um fado. A história de um mundo extraordinário, de grandes obras, que se perdeu.
Até aí, tudo bem. Mas há um
ponto cego na perspectiva melancólica da professorinha. A referência à contradição de uma civilização selvagem, de uma humanidade que ergue seus monumentos com o trabalho escravo, só
aparece realmente quando as
duas já estão fora do âmbito europeu, diante das pirâmides do
Egito.
Em Marselha, quando encontram um velho pescador (a imagem romântica do bom trabalhador, do homem do povo e da tradição), a professorinha deplora a
sociedade agora dependente do
petróleo. Como se a sua "viagem
pela história" também não dependesse disso.
Por meio do discurso de três
passageiras (uma francesa, uma
italiana e uma grega), o filme lastima o ocaso da cultura européia
e de valores como os direitos humanos, a democracia etc. Por fim,
o navio, comandado por um
americano, é explodido por terroristas que instalam bombas a bordo, em algum porto do mundo
árabe.
Em momento nenhum parece
haver conexão entre essa civilização que desaparece e o seu desaparecimento. Nem mesmo a professorinha de história é capaz de
fazer a conexão para a filha. É como se a sociedade colonialista, industrial, dependente do petróleo,
não fosse a mesma civilização ocidental humanista que ela exalta.
Os homens erram eventualmente,
por ganância, mas isso não chega
a servir de ponte de ligação entre
o mito do passado e a derrocada
do presente. Portugal é a vítima
inocente, a pobrezinha que, de
um promontório à parte, privilegiado, assiste à derrocada do Ocidente como se a sua única contribuição a esse mundo tivessem sido os feitos extraordinários de um passado mítico e distante.
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