São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

Ponto cego

Você nunca sabe se um filme de Manoel de Oliveira é irônico ou ingênuo, reacionário ou libertário, inteligente ou burro, simplista ou muito mais complexo do que você pode imaginar. Você nunca sabe se é de propósito ou por acaso. Se é crítica ou apologia. Quando é sério e quando é escárnio. E é essa ambigüidade que permite a adesão de espectadores em tudo o mais divergentes.
Há alguns anos, deixei um amigo português pasmo ao me referir à ironia de Manoel de Oliveira. Falávamos de "Non, ou a Vã Glória de Mandar" (1990). O filme trata da história de Portugal desde as batalhas travadas pelas tribos lusitanas contra os romanos até a guerra colonial, na África. Para o espectador acostumado às superproduções históricas de Hollywood, não há como não estranhar o aspecto mambembe das cenas de batalha ou as ações canhestras dos governantes, vistas depois como atos heróicos e míticos na constituição da pátria -o que eu, como grande admirador do cineasta português, só podia interpretar como a mais ácida ironia.
A representação da glória nacional era pobrezinha. E isso só podia ser intencional. O que o filme contava era uma história de fracassos. O amigo português me garantiu que era justo o contrário: ou eu era cego ou estava vendo demais. Sob a reflexão a propósito da vaidade nacional e da ilusão da guerra, o que haveria no fundo era um misto de complexo de inferioridade e sonho de grandeza: a exaltação da nação como um mito trágico.
Não era possível. Me lembro de ter ficado maravilhado quando assisti à adaptação de sete horas que Manoel de Oliveira fez da peça de Claudel "Le Soulier de Satin" ("O Sapato de Cetim", 1985). A representação tinha um tom "gauche", incongruente, que deixava tudo um pouco gozado. A superprodução, financiada com dinheiro francês, muitas vezes parecia negligente, capenga, apesar da exuberância, o que produzia uma sensação de distanciamento por meio de um humor muito peculiar, um sarcasmo imprevisto. Era como se Oliveira tivesse aportuguesado a "qualidade francesa".
A lembrança de outros filmes do diretor em que o sarcasmo já não deixa margem para dúvidas -à exemplo do irreverente "O Passado e o Presente" (1971), adaptação da peça do engraçadíssimo Vicente Sanches, ou do delirante "Os Canibais" (1988)- bastou para me tranqüilizar por um tempo.
Mas só até um texto excelente, publicado há alguns anos no caderno Mais! ("Carta Aberta a Manoel de Oliveira", do historiador Luiz Felipe de Alencastro), me alertar para um aspecto da obra do diretor português que eu não tinha levado em conta: quando trata da relação de Portugal com as ex-colônias da África, o cineasta omite e ignora o tráfico de escravos, como se isso nunca tivesse existido, como se não tivesse sido o fundamento da relação da metrópole com suas colônias africanas durante séculos.
O cineasta ousado também pode ser um homem conservador. E há uma dimensão ideológica por demasiado explícita em alguns dos seus filmes, que pede um tipo de comentário um tanto antiquado -e que alguns poderão considerar redutor.
"Um Filme Falado", em cartaz em São Paulo, é obra de um velho cineasta. E não só pela idade do diretor (Oliveira tem 98 anos). É um belo filme, uma alegoria nostálgica, que chora o fim de uma civilização (a ocidental).
Uma professora portuguesa e sua filha pequena embarcam, em Lisboa, num navio que as levará até o pai da menina, em Bombaim, na Índia. A professorinha de história aproveita a viagem para dar aulas à filha. Conforme o navio faz escalas em portos do Mediterrâneo, ela vai contando à menina a história do Ocidente. É mais um lamento, um fado. A história de um mundo extraordinário, de grandes obras, que se perdeu.
Até aí, tudo bem. Mas há um ponto cego na perspectiva melancólica da professorinha. A referência à contradição de uma civilização selvagem, de uma humanidade que ergue seus monumentos com o trabalho escravo, só aparece realmente quando as duas já estão fora do âmbito europeu, diante das pirâmides do Egito.
Em Marselha, quando encontram um velho pescador (a imagem romântica do bom trabalhador, do homem do povo e da tradição), a professorinha deplora a sociedade agora dependente do petróleo. Como se a sua "viagem pela história" também não dependesse disso.
Por meio do discurso de três passageiras (uma francesa, uma italiana e uma grega), o filme lastima o ocaso da cultura européia e de valores como os direitos humanos, a democracia etc. Por fim, o navio, comandado por um americano, é explodido por terroristas que instalam bombas a bordo, em algum porto do mundo árabe.
Em momento nenhum parece haver conexão entre essa civilização que desaparece e o seu desaparecimento. Nem mesmo a professorinha de história é capaz de fazer a conexão para a filha. É como se a sociedade colonialista, industrial, dependente do petróleo, não fosse a mesma civilização ocidental humanista que ela exalta. Os homens erram eventualmente, por ganância, mas isso não chega a servir de ponte de ligação entre o mito do passado e a derrocada do presente. Portugal é a vítima inocente, a pobrezinha que, de um promontório à parte, privilegiado, assiste à derrocada do Ocidente como se a sua única contribuição a esse mundo tivessem sido os feitos extraordinários de um passado mítico e distante.

Texto Anterior: Ciência: Programa mostra nove meses em uma hora
Próximo Texto: Artes plásticas: Mostra reconstitui memória de Duke Lee
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.