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CARTAS DA EUROPA
Mulheres, crianças e fantasmas
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Sou um homem de gostos simples. Os meus colegas de ofício, tudo gente letrada e literata,
sonham ganhar o Nobel, ser publicados em 15 línguas, assombrar a Academia e a Feira do Livro de Frankfurt. Eu não. E vou
contar um segredo aos leitores.
Cheguem perto. Mais perto. Assim está bem: o meu sonho mais
profundo, e mais inconfessado, e
mais inconfessável, é ser um dia o
Prof. Higgins em "Minha Bela
Dama". Li há pouco, quase por
acaso, que a minha querida Keira
Knightley será a nova Eliza Doolittle em produção teatral londrina. Suspiro. Não peço tanto, meu
Deus, não peço tanto.
Mas, se alguém aí no Brasil estiver a pensar numa versão moderna do projeto, por favor, peçam o
meu endereço à Folha. Sei dançar, sei cantar. Tenho porte e, com
maquiagem certa, tenho idade. E,
se posso sugerir companhia feminina, escolho a atriz Carla Regina, a grande descoberta da minha última década. Adorava educar Carla em palco: transformá-la
numa "lady" depois de sessões
contínuas de açoites gramaticais.
O problema, "hélas", é que os
meus sonhos não são recomendáveis. Vejam bem: a última sobrevivente americana do Titanic,
que tinha cinco anos quando o
navio afundou, em 1912, acabou
de morrer nos Estados Unidos. Lillian Asplund perdeu o pai e três
irmãos. Sobreviveu, juntamente
com a mãe e o irmão mais novo,
que tinha três na noite da tragédia. Nenhuma surpresa. Quando
o Titanic conheceu as profundezas do Atlântico, 74% das mulheres sobreviveram ao desastre. Os
homens, na esmagadora maioria,
ficaram no navio e morreram
com ele. Falamos de homens de
classe. Em 1912, seria intolerável
que um "cavalheiro", a aspiração
de qualquer homem civilizado,
fosse capaz de ocupar o lugar de
uma mulher, ou de uma criança,
para salvar a sua triste pele. Uma
vida de covardia não valia a pena. Melhor ficar a bordo e beber
champanhe até o fim.
E hoje? Hoje, se o navio afunda,
as mulheres afundam com ele.
Primeiro, porque são os homens
os primeiros a saltar para o bote
salva-vidas, conseqüência inevitável da inevitável efeminização
da espécie: conheço homens que
fazem depilação, pintam os olhos,
usam salto alto. Só não cortam o
próprio pênis porque a lima de
unhas não permite.
Mas as mulheres também afundavam com o navio porque Simone de Beauvoir, a santa padroeira
da tribo, escreveu e mandou. Para sermos exatos, em 1949, ano da
publicação de "O Segundo Sexo":
uma interpretação idiossincrática de Nietzsche e Marx que permitiu a Beauvoir formular a tese
que arrastou todo o resto. As mulheres não nascem "mulheres",
escreveu; as mulheres constroem-se "mulheres" e, não, Beauvoir
não estava a pensar em Roberta
Close ou na cirurgia plástica, que
só serve para iludir a pobre ingenuidade dos machos. Beauvoir
falava da identidade feminina:
uma construção imposta por uma
sociedade "falocêntrica" que
oprime as donzelas ao atribuir
papéis de sujeição sexual e moral.
Para Beauvoir, derrubar essa sociedade passava por um igualitarismo radical: pelo regresso à nossa condição de humanos e não,
nunca, jamais, pela distinção, natural e até cultural, entre "homens" e "mulheres".
Não pretendo contaminar ninguém com meu pessimismo de estimação. Mas Beauvoir triunfou.
Abrir uma porta ou dar precedência a uma senhora é considerado ofensivo em certos antros, a
começar pelos da universidade
ocidental. Eu próprio, confesso, já
provei deste caldo: quando, insensatamente, levantava da mesa
sempre que o elemento feminino
se levantava também. Ficava sozinho no campo de batalha, fuzilado pelos olhares em volta. Então regressava à minha condição
de macho e, mais do que macho,
de criminoso e de verme. Sentado.
Gelado. Pregado. Mas quem julgava eu que era? O Prof. Higgins
em educação sentimental?
Claro que não. Ou claro que
sim. Que interessa? É por isso que,
ao saber da morte de Lillian Asplund, a criança e a mulher que o
cavalheirismo de 1912 salvou da
morte certa, eu ergo a minha taça
para os fantasmas que ficaram
para trás.
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