São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 2006

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CARTAS DA EUROPA

Mulheres, crianças e fantasmas

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Sou um homem de gostos simples. Os meus colegas de ofício, tudo gente letrada e literata, sonham ganhar o Nobel, ser publicados em 15 línguas, assombrar a Academia e a Feira do Livro de Frankfurt. Eu não. E vou contar um segredo aos leitores. Cheguem perto. Mais perto. Assim está bem: o meu sonho mais profundo, e mais inconfessado, e mais inconfessável, é ser um dia o Prof. Higgins em "Minha Bela Dama". Li há pouco, quase por acaso, que a minha querida Keira Knightley será a nova Eliza Doolittle em produção teatral londrina. Suspiro. Não peço tanto, meu Deus, não peço tanto.
Mas, se alguém aí no Brasil estiver a pensar numa versão moderna do projeto, por favor, peçam o meu endereço à Folha. Sei dançar, sei cantar. Tenho porte e, com maquiagem certa, tenho idade. E, se posso sugerir companhia feminina, escolho a atriz Carla Regina, a grande descoberta da minha última década. Adorava educar Carla em palco: transformá-la numa "lady" depois de sessões contínuas de açoites gramaticais.
O problema, "hélas", é que os meus sonhos não são recomendáveis. Vejam bem: a última sobrevivente americana do Titanic, que tinha cinco anos quando o navio afundou, em 1912, acabou de morrer nos Estados Unidos. Lillian Asplund perdeu o pai e três irmãos. Sobreviveu, juntamente com a mãe e o irmão mais novo, que tinha três na noite da tragédia. Nenhuma surpresa. Quando o Titanic conheceu as profundezas do Atlântico, 74% das mulheres sobreviveram ao desastre. Os homens, na esmagadora maioria, ficaram no navio e morreram com ele. Falamos de homens de classe. Em 1912, seria intolerável que um "cavalheiro", a aspiração de qualquer homem civilizado, fosse capaz de ocupar o lugar de uma mulher, ou de uma criança, para salvar a sua triste pele. Uma vida de covardia não valia a pena. Melhor ficar a bordo e beber champanhe até o fim.
E hoje? Hoje, se o navio afunda, as mulheres afundam com ele. Primeiro, porque são os homens os primeiros a saltar para o bote salva-vidas, conseqüência inevitável da inevitável efeminização da espécie: conheço homens que fazem depilação, pintam os olhos, usam salto alto. Só não cortam o próprio pênis porque a lima de unhas não permite.
Mas as mulheres também afundavam com o navio porque Simone de Beauvoir, a santa padroeira da tribo, escreveu e mandou. Para sermos exatos, em 1949, ano da publicação de "O Segundo Sexo": uma interpretação idiossincrática de Nietzsche e Marx que permitiu a Beauvoir formular a tese que arrastou todo o resto. As mulheres não nascem "mulheres", escreveu; as mulheres constroem-se "mulheres" e, não, Beauvoir não estava a pensar em Roberta Close ou na cirurgia plástica, que só serve para iludir a pobre ingenuidade dos machos. Beauvoir falava da identidade feminina: uma construção imposta por uma sociedade "falocêntrica" que oprime as donzelas ao atribuir papéis de sujeição sexual e moral. Para Beauvoir, derrubar essa sociedade passava por um igualitarismo radical: pelo regresso à nossa condição de humanos e não, nunca, jamais, pela distinção, natural e até cultural, entre "homens" e "mulheres".
Não pretendo contaminar ninguém com meu pessimismo de estimação. Mas Beauvoir triunfou. Abrir uma porta ou dar precedência a uma senhora é considerado ofensivo em certos antros, a começar pelos da universidade ocidental. Eu próprio, confesso, já provei deste caldo: quando, insensatamente, levantava da mesa sempre que o elemento feminino se levantava também. Ficava sozinho no campo de batalha, fuzilado pelos olhares em volta. Então regressava à minha condição de macho e, mais do que macho, de criminoso e de verme. Sentado. Gelado. Pregado. Mas quem julgava eu que era? O Prof. Higgins em educação sentimental?
Claro que não. Ou claro que sim. Que interessa? É por isso que, ao saber da morte de Lillian Asplund, a criança e a mulher que o cavalheirismo de 1912 salvou da morte certa, eu ergo a minha taça para os fantasmas que ficaram para trás.


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