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CONTARDO CALLIGARIS
Sonhar com o fim do mundo
Fui assistir a "Exterminador
do Futuro 3" porque gosto
das histórias de fim do mundo.
Como a estréia do filme no Brasil está prevista para o dia 1º de
agosto, só uma pequena antecipação. Os espectadores do "Exterminador" 1 e 2 (que, em regra,
gostam de apocalipse) fiquem sossegados. Apesar da luta de Sarah
Connor e do heróico suicídio do
exterminador número 2, a catástrofe só pode ser retardada, não
evitada. Era lógico que fosse assim. Se nunca chegasse o mundo
futuro em que as máquinas tentarão acabar com os humanos,
não existiriam o tempo e o lugar
de onde os exterminadores voltam para o passado, com o intento de modificá-lo. Ou seja, a história da série "Exterminador" não
aconteceria.
Mas vamos ao essencial: gostamos de sonhar com o fim do mundo. Uso o plural, pois, obviamente, não sou o único. O apocalipse é
um vasto gênero narrativo. Fora
os romances, uma filmografia detalhada já seria indigesta. Ela
comportaria diversas seções.
Há o fim do mundo por invasão
sideral, de "A Guerra dos Mundos" (1952) a "Independence
Day" (2001). Há o fim do mundo
tipo "Impacto Profundo" (1997),
por choque com um imenso meteorito. Há o fim do mundo biológico, de "A Última Esperança da
Terra" ("The Omega Man", 1971)
à minissérie "The Stand", de 1994
(o livro de Stephen King, traduzido como "A Dança da Morte", é
bem superior ao filmado). Há o
fim do mundo pela revolta de bichos, mortos-vivos e afins, desde
os vários "Planeta dos Macacos"
até "Reino de Fogo" (2001). E há o
fim do mundo mais popular, por
catástrofe interna e, de alguma
forma, merecida, nuclear ou não:
a trilogia de Mad Max, os filmes
de Kevin Costner "Waterworld -
O Segredo das Águas", de 1995, e
"The Postman - O Mensageiro",
de 1997, a série dos exterminadores, "Matrix" 1 e 2 etc.
De nacional, vale lembrar, ao
menos, o romance "Blecaute", de
Marcelo Rubens Paiva.
O tamanho do gênero mostra
que o sonho de apocalipse é parte
integrante da cultura popular
contemporânea. Resta se perguntar por quê.
Jacques Lacan, o psicanalista
francês, disse uma vez que não
poderíamos aguentar nossas vidas se não tivéssemos a certeza de
que, um dia, essa história vai acabar. É uma inversão provocadora
de uma idéia do senso comum segundo a qual conseguimos viver
só à condição de esquecer o caráter efêmero da vida e do mundo.
O que é mais intolerável: que a
coisa acabe um dia ou que não
acabe nunca? Difícil dizer.
As histórias de fim do mundo
respondem a essa alternativa incômoda sugerindo uma terceira
via. O essencial, nelas, não é que o
mundo acabe, mas é o destino dos
escassos sobreviventes. Pois sempre há sobreviventes.
Para eles (e nós, de qualquer
modo, fazemos parte do grupo,
não é?), o fim do mundo é o fim
da complexidade e da frivolidade
da vida.
Acaba a preocupação com redes
incompreensíveis de poder econômico, político e social. Acaba o
cuidado com as aparências, com
as seduções e com as mentiras que
decidem nosso lugar na sociedade. Acaba a incerteza que nos leva a questionar nosso próprio desejo como se fosse o oráculo de
Delfos. Acaba a mesquinhez de
nossos dramas amorosos.
Tudo fica claro. Os inimigos são
evidentes, sejam vírus, vampiros,
máquinas ou extraterrestres. Por
serem inimigos dos humanos em
geral, eles estabelecem de vez e
imperativamente nossa unidade:
quem se importa com religiões,
etnias, ressentimentos e dívidas
passadas diante da ameaça de extermínio? Copular torna-se necessário para garantir a continuação
da espécie, e, francamente, não
há tempo para procurar um parceiro de ombros mais largos ou
uma parceira mais peituda. As
tarefas são facilmente definidas: a
miragem do sucesso não faz sentido, é preciso encontrar gasolina,
abrigo, armas e comida.
O fim do mundo satisfaz todas
as nostalgias, prometendo aos sobreviventes a volta a um mítico
mundo pré-moderno. O apocalipse nos livra da indeterminação e
da insatisfação do desejo; entramos num cenário simples, autêntico, dominado por necessidades
imediatas. Que alívio.
De repente, uma lembrança de
infância. Aos 12 anos, leitor assíduo de ficção científica, a cada
noite, na cama, antes de dormir,
oferecia-me de presente um pequeno devaneio: no meio de meu
sono, chegariam os marcianos,
decididos a nos aniquilar. Seu
raio destruidor cairia, naturalmente, bem em cima de minha escola. Acordaria, no dia seguinte,
num universo transformado. Nada de interrogações, provas e testes: quem ousaria me perguntar
as declinações latinas na hora de
coordenar a resistência terrestre?
Nada de esconder meu interesse
pela pequena Loredana, que se
sentava no banco da frente, pois,
de qualquer forma, jovens casais
seriam decididos por sorteio, para
fortalecer e renovar a espécie. Nada de me perguntar angustiado o
que seria minha vida adulta, pois
a ameaça faria do presente nosso
único tempo verbal. Chegando, os
marcianos exterminariam as
obrigações vindas de meu passado e o peso de meu futuro.
PS: Quatro ou cinco anos mais
tarde, meus sonhos revolucionários radicais talvez pertencessem
ao mesmo gênero literário.
@ - ccalligari@uol.com.br
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