São Paulo, Sábado, 10 de Julho de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Contra a literatura

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

A essência da poesia de Paul Celan (1920-1970) é um paradoxo: dizer o indizível, comunicar o incomunicável. Cada poema é como uma caixa-preta, ou uma mensagem jogada ao mar dentro de uma garrafa -metáfora que o próprio poeta usou em seu discurso ao receber o prêmio literário da cidade de Bremen, em 1958. Já no esforço de abri-la (e decifrá-la) está um pouco da sua singularidade; o esforço que o poema exige já é parte de um encontro com o leitor. Como na tradição cabalística, que esses poemas incorporam, é a criação do mistério que dá sentido ao mundo.
Celan escreve contra a literatura. Ou seja, a favor. Herdeiro de toda uma tradição moderna, mas também testemunha e vítima das atrocidades do século, ele procura uma verdade que a própria literatura, nessa mesma busca, acabou dissipando.
Como Mallarmé e Webern, ele busca uma obra absoluta que possa voltar a dizer o que já não pode ser dito pelos limites das convenções artísticas e literárias e pelo alcance viciado das palavras diante de uma realidade irrepresentável. Quer dar palavra aos mortos, e o silêncio ganha aí um sentido fundamental. Quer, "livre-da-arte", reencontrar o caminho da arte: "Um ribombar: é/ a própria verdade/ que entre as pessoas/ surgiu,/ em meio ao/ turbilhão de metáforas".
A própria história de Celan o força, de uma maneira violenta, a tomar esse caminho. Paul Antschel (ou Anczel -Celan é um anagrama) nasceu em Czernowitz, na Romênia, de pais judeus-alemães. Em 42, com a aliança entre Romênia e Alemanha, seus pais são enviados a um campo de extermínio (Michailowka, na Ucrânia), onde são fuzilados meses depois. Celan foge e acaba num campo de trabalhos forçados.
Em 47, sobrevivente de guerra numa Bucareste ocupada pelos soviéticos, vai para Viena e lá publica seu primeiro livro de poemas. Seis meses depois, vai para Paris, onde se casa e passa o resto de sua vida.
Escrevendo sempre em alemão, sua língua materna, mas "como se fosse uma língua estrangeira" (segundo George Steiner) nesse esforço de dizer o indizível sob a marca do Holocausto, recebe em 1960 o Prêmio Buchner, a maior consagração literária da Alemanha.
Em abril de 1970, separado da mulher com quem teve um filho e sofrendo de profundas crises de depressão que o obrigam a ser internado, Celan se mata, jogando-se no Sena.
Entre os poetas que traduziu para o alemão (Pessoa, René Char, Ungaretti, Ossip Mandelstam etc.), Henri Michaux é talvez o que mais se aproxima dessa atração do vazio que acabou dando a Celan a fama de "hermético". O próprio poeta, no entanto, fazia questão de dizer que era "absolutamente não-hermético" e sugeria aos tradutores: "Apenas leiam, leiam de novo, e o entendimento surgirá por si só".
A tradução é sempre um processo de escolhas e perdas. Em Paul Celan, pela radicalidade desses poemas atraídos pelo silêncio ao mesmo tempo em que carregam uma multiplicidade de sentidos nas palavras reduzidas ao mínimo, a tradução se torna um dilema praticamente insolúvel, o que faz das edições bilíngues quase uma exigência.
"Cristal", seleção de poemas de oito livros do autor lançada agora pela Iluminuras com tradução de Claudia Cavalcanti, enfrenta esse desafio e suas dificuldades. Como em toda tradução, há acertos e perdas. No caso desta edição, o problema mais geral tem a ver com a clareza. Muitas vezes, a tradução dificulta o entendimento onde não precisava, como se os poemas não tivessem sido lidos as vezes necessárias para fazer "o entendimento surgir por si só", como aconselhava o autor.
Por exemplo: no célebre "Todesfuge" (traduzido por "Fuga sobre a Morte"), o verso "wir schaufeln ein Grab in der Lften da liegt man nicht eng" virou "cavamos uma cova grande nos ares onde não se deita ruim", o que não é claro e soa mal -mais para Tarzan do que para o "alemão escrito como língua estrangeira" de que falava Steiner.
Na esmerada edição portuguesa ("Sete Rosas Mais Tarde", Livros Cotovia, tradução de João Barrento e Y.K. Centeno, 1993), o mesmo verso foi traduzido por "cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados", em bom e claro português, pelo menos. Além disso, na edição brasileira, o verso foi simplesmente omitido no lugar onde deveria aparecer pela primeira vez.
Apesar de eventuais problemas como esses, uma edição bilíngue de Celan, um dos maiores poetas da segunda metade do século, é sempre bem-vinda. O paradoxo final dessa obra é, afastando qualquer possibilidade de romantismo, permitir associar as imagens antes mais inassociáveis e, em sua descrença e niilismo profundos, terminar por renovar as possibilidades da arte e da palavra. Um poeta na fronteira, em busca de uma palavra-limite.


Avaliação:    


Livro: Cristal
Autor: Paul Celan
Tradução: Claudia Cavalcanti
Lançamento: Iluminuras
Quanto: R$ 24 (190 págs.)


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