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RESENHA DA SEMANA
Contra a literatura
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
A essência da poesia de Paul
Celan (1920-1970) é um paradoxo: dizer o indizível, comunicar o incomunicável. Cada
poema é como uma caixa-preta, ou uma mensagem jogada
ao mar dentro de uma garrafa
-metáfora que o próprio poeta usou em seu discurso ao receber o prêmio literário da cidade de Bremen, em 1958. Já no
esforço de abri-la (e decifrá-la)
está um pouco da sua singularidade; o esforço que o poema
exige já é parte de um encontro
com o leitor. Como na tradição
cabalística, que esses poemas
incorporam, é a criação do
mistério que dá sentido ao
mundo.
Celan escreve contra a literatura. Ou seja, a favor. Herdeiro
de toda uma tradição moderna, mas também testemunha e
vítima das atrocidades do século, ele procura uma verdade
que a própria literatura, nessa
mesma busca, acabou dissipando.
Como Mallarmé e Webern,
ele busca uma obra absoluta
que possa voltar a dizer o que já
não pode ser dito pelos limites
das convenções artísticas e literárias e pelo alcance viciado
das palavras diante de uma realidade irrepresentável. Quer
dar palavra aos mortos, e o silêncio ganha aí um sentido
fundamental. Quer, "livre-da-arte", reencontrar o caminho
da arte: "Um ribombar: é/ a
própria verdade/ que entre as
pessoas/ surgiu,/ em meio ao/
turbilhão de metáforas".
A própria história de Celan o
força, de uma maneira violenta, a tomar esse caminho. Paul
Antschel (ou Anczel -Celan é
um anagrama) nasceu em
Czernowitz, na Romênia, de
pais judeus-alemães. Em 42,
com a aliança entre Romênia e
Alemanha, seus pais são enviados a um campo de extermínio
(Michailowka, na Ucrânia),
onde são fuzilados meses depois. Celan foge e acaba num
campo de trabalhos forçados.
Em 47, sobrevivente de guerra numa Bucareste ocupada
pelos soviéticos, vai para Viena
e lá publica seu primeiro livro
de poemas. Seis meses depois,
vai para Paris, onde se casa e
passa o resto de sua vida.
Escrevendo sempre em alemão, sua língua materna, mas
"como se fosse uma língua estrangeira" (segundo George
Steiner) nesse esforço de dizer
o indizível sob a marca do Holocausto, recebe em 1960 o Prêmio Buchner, a maior consagração literária da Alemanha.
Em abril de 1970, separado da
mulher com quem teve um filho e sofrendo de profundas
crises de depressão que o obrigam a ser internado, Celan se
mata, jogando-se no Sena.
Entre os poetas que traduziu
para o alemão (Pessoa, René
Char, Ungaretti, Ossip Mandelstam etc.), Henri Michaux é
talvez o que mais se aproxima
dessa atração do vazio que acabou dando a Celan a fama de
"hermético". O próprio poeta,
no entanto, fazia questão de dizer que era "absolutamente
não-hermético" e sugeria aos
tradutores: "Apenas leiam,
leiam de novo, e o entendimento surgirá por si só".
A tradução é sempre um processo de escolhas e perdas. Em
Paul Celan, pela radicalidade
desses poemas atraídos pelo silêncio ao mesmo tempo em
que carregam uma multiplicidade de sentidos nas palavras
reduzidas ao mínimo, a tradução se torna um dilema praticamente insolúvel, o que faz das
edições bilíngues quase uma
exigência.
"Cristal", seleção de poemas
de oito livros do autor lançada
agora pela Iluminuras com tradução de Claudia Cavalcanti,
enfrenta esse desafio e suas dificuldades. Como em toda tradução, há acertos e perdas. No
caso desta edição, o problema
mais geral tem a ver com a clareza. Muitas vezes, a tradução
dificulta o entendimento onde
não precisava, como se os poemas não tivessem sido lidos as
vezes necessárias para fazer "o
entendimento surgir por si só",
como aconselhava o autor.
Por exemplo: no célebre "Todesfuge" (traduzido por "Fuga
sobre a Morte"), o verso "wir
schaufeln ein Grab in der Lften
da liegt man nicht eng" virou
"cavamos uma cova grande
nos ares onde não se deita
ruim", o que não é claro e soa
mal -mais para Tarzan do
que para o "alemão escrito como língua estrangeira" de que
falava Steiner.
Na esmerada edição portuguesa ("Sete Rosas Mais Tarde", Livros Cotovia, tradução
de João Barrento e Y.K. Centeno, 1993), o mesmo verso foi
traduzido por "cavamos um
túmulo nos ares aí não ficamos
apertados", em bom e claro
português, pelo menos. Além
disso, na edição brasileira, o
verso foi simplesmente omitido no lugar onde deveria aparecer pela primeira vez.
Apesar de eventuais problemas como esses, uma edição
bilíngue de Celan, um dos
maiores poetas da segunda
metade do século, é sempre
bem-vinda. O paradoxo final
dessa obra é, afastando qualquer possibilidade de romantismo, permitir associar as
imagens antes mais inassociáveis e, em sua descrença e niilismo profundos, terminar por
renovar as possibilidades da
arte e da palavra. Um poeta na
fronteira, em busca de uma palavra-limite.
Avaliação:
Livro: Cristal
Autor: Paul Celan
Tradução: Claudia Cavalcanti
Lançamento: Iluminuras
Quanto: R$ 24 (190 págs.)
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