São Paulo, sexta-feira, 10 de agosto de 2001

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CD de Totonho & Os Cabra inicia leva de migração da produção pop paraibana ao sul e novo embate entre periferia e centro

Anti-heróis da Paraíba

DA REPORTAGEM LOCAL

A periferia se aproxima um pouquinho mais do centro. Aquietada a onda pernambucana do mangue beat, é vez de a cena da Paraíba começar a "exportar" artistas pop para o centro-sul brasileiro.
Quem chega primeiro, por uma gravadora de alcance nacional (a Trama), é Totonho, 37, que, sem pose ou estampa de pop star, apresenta agora sua inconstante banda Totonho & Os Cabra, já de prolongada atividade artística.
"Totonho & Os Cabra" avança na receita iniciada pela geração mangue, exercitando regionalismo, pop e eletrônica. Mas o líder do grupo relativiza a identificação com aquele movimento: "O mangue foi um movimento, uma "tchurma". Meu trabalho é mais solitário. Eles tinham o desejo de quebrar barreiras, de não ficar no gueto. Comungo com os sentimentos da tropa de lá, apesar de não ter relação com ela".
Totonho vem de Monteiro, na zona semi-árida paraibana, onde viveu até os 18 anos. "Toda a minha musicalidade vem desse lugar, das vaquejadas, dos repentistas", resume. Também a obsessão temática com (as) cabras e (os) cabras parece ter nascido ali.
"Criança, vendi buchada de bode de porta em porta. Era o prato típico do sertão, em razão da economia. Uma família de cinco se alimentava das sobras do bode pagando R$ 2,50", lembra. Daí "a" cabra, mas também "o" cabra: "Meu pai nunca chamou ninguém pelo nome. Tratava a gente de cabra, "ê, cabra, espera o carro-pipa, pega a buchada". Minha primeira namorada era chamada de cabrita pelo pai, mas só quando ele estava bravo. Os cabras são os bastardos, os camponeses".
É curto ao se referir à popularidade que FHC rendeu à buchada, há poucos anos: "Ele e outros políticos pedem muitos códigos emprestados, que encenem alguma intimidade com cada região".
Aos 18 anos, tentou São Paulo, onde viveu um ano e trabalhou como operário. Na volta, a família havia migrado para João Pessoa em busca de melhores condições de vida. Estabeleceu-se na capital, onde, para estudar, trabalhou como abatedor de galinha e vendedor de caldo de cana.
Em João Pessoa, novas referências musicais causaram a primeira guinada: "Encontrei uns punks "comunitários", os fios desencapados do bairro em que eu vivia. Fundamos uma cooperativa de compositores. Comecei a tocar com o pessoal, a criação de músicas era coletiva. Ali tive minhas primeiras informações de pop, conheci o rock mundial", diz. Nesse meio circulavam, entre outros, Chico César, Jarbas Mariz e o grupo punk Jaguaribe Carne, de Pedro Osmar.
"Tinha uma defasagem grande de leitura, e o grupo me deu esse acesso. Li os manifestos comunistas, Umberto Eco. Compreendi que a questão da música estava associada a ações comunitárias. Tocamos em favelas, associações de moradores, terrenos baldios", lembra, dez anos após ter se mudado definitivamente para o Rio.
Identifica-se, nessa última migração, com o pernambucano Lenine, de "uma safra que veio e comeu o pão que o diabo amassou". "Vim para fazer pós-graduação e tentar arquitetar meu trabalho musical e passei a trabalhar como alfabetizador. Iniciei ações à noite com os meninos de rua, fundamos a ONG Ex-Cola", conta.
"Em determinados momentos deu vontade de desistir dessa postura, mas vi que não dava para separar minha música de minhas atividades. Aprendi a procurar o público que me interessasse, a não querer neguinho balançando o rabo para lá e para cá."
Chegar ao pop sulista pelas mãos da Trama o surpreende pela metade. "Só mesmo uma gravadora alternativa poderia pegar a gente. Mandei 20 fitas demo, para todas as gravadoras. Imaginei que não ia rolar, começava a pensar em fazer de forma independente, com toda a minha feiúra e minhas baforadas de dragão. Por isso, quando Carlos Eduardo Miranda apareceu, confiei nele e o esperei", diz, referindo-se ao produtor do disco e à demora de quase quatro anos entre início e lançamento.
Admite que, antes de Miranda, o tratamento de sua música era convencional. "Dos oito cabras da banda, quando mostrei o disco, só ficaram três. Alguns disseram: "Isso não é música". Tocavam jazz, Debussy, música acabada. Na MPB há essa coisa chata de que a vertente de voz e violão é sagrada. Ninguém quer trocar o banquinho por um balde, o microfone por um megafone", critica.
Enfim, fala de si e descreve seu ceticismo: "Trabalhamos há muito para encontrar uma brecha em que caiba nossa feiúra. Fiquei sempre de pé atrás, mesmo com a Trama. Em muitos momentos me sinto um excluído. Ninguém me indicou nenhuma oportunidade. Por isso me acho uma pessoa solidária, e isso dá o tom de minha prática artística. Sou um artista inquieto".
O medo do futuro o remete de volta à infância. "Tenho vários medos, até de não dar conta do que me propus a fazer. Comparo com quando era menino e sobravam buchadas. A gente tinha que comer tudo que sobrava, eu detestava. Hoje meu disco me soa como uma buchada que ainda não desceu", compara, tentando trilhar a rota da inclusão.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)



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