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Dentaduras e o inconsciente fernandohenriqueano
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
O assunto ficou um pouco
obscurecido com a morte de
Lady Di, mas não deixa de ser
intrigante. Depois do frango e
do iogurte, seriam as dentaduras o novo símbolo do Plano
Real: eis o que disse o presidente Fernando Henrique, em pronunciamento público há cerca
de 15 dias.
A primeira reação foi a saudável gargalhada de um assessor, que ecoou pela sala de
conferências antes de ser reprimida por FHC. O presidente
estava falando sério.
Logo depois, revelou-se que a
associação dos protéticos dentários não comungava do otimismo presidencial; há poucos
indícios de aumento no consumo de dentaduras.
O que me parece estranho é a
escolha do símbolo. Por que
dentaduras? Por que não arados, óculos, bicicletas, telefones? Tento aproximar-me do
inconsciente fernandohenriqueano.
Uma primeira hipótese. O
presidente ficou chocado, como todos, ao ver a libertação
do Bandido da Luz Vermelha.
O suposto galã e assassino tinha poucos, pouquíssimos
dentes na boca. Não era mais a
imagem do perigo -perigo
"vermelho"?-, e sim uma figura da Praça da Alegria, aparentemente inofensiva apesar
de hedionda.
Luz Vermelha ficou preso 30
anos. Em 1967, os tempos eram
de ditadura e contestação. Che
Guevara hoje é assunto de biógrafos americanos e de necrofilia sebastianista. Outro dia Fidel Castro apareceu na televisão, para desmentir, como todo bom ditador, os rumores em
torno de sua morte; discursou
com voz fina, de velhinho. Ainda está com os dentes, mas não
morde mais.
Agora, Luz Vermelha se reintegra à sociedade. Mas fica a
pergunta no ar: o preço por isso terá sido o de perder os dentes na prisão?
O raciocínio é puramente especulativo, mas não haveria
uma solidariedade inconsciente entre a idéia do "esqueçam o
que escrevi" e a atual falta de
dentes do galã que aterrorizava a classe média?
Passo, entretanto, a uma segunda hipótese. Na idéia de
que o Plano Real vai oferecer
dentaduras ao povão, estaria
presente o contrário do que eu
dizia acima. Não mais a nostalgia pelo velho tigre da esquerda, e sim a volta ao velho
esquema dos currais eleitorais.
É sabido que, nos grotões do
Brasil, sempre se conseguiu o
voto do capiau, do tabaréu, do
cassaco de engenho, em troca
desses bens materiais: um par
de sapatos, o primeiro pé antes, o segundo depois da eleição; pares de óculos, pares de
dentaduras.
Ao prometer dentaduras,
FHC inconscientemente estaria pensando numa reeleição
ao estilo do PFL. E, por falar
em PFL, não é invasão de intimidade reparar nos dentes da
frente de Antônio Carlos Magalhães.
São separadinhos, conferem
malícia à figura, algo de esquilo ou de coelho, uma presteza
capaz de neutralizar, em parte,
a imagem de domínio regional
e truculência política.
Mas a impressão de uma oligarquia roedora, predatória e
gordinha teria de ser dissolvida no atual governo. A idéia
de Fernando Henrique seria,
portanto, a de propor dentaduras mais regulares a seus
próprios aliados (Luís Eduardo, por que não?). Não deixa
de ser modernizante.
Mas aqui entramos na terceira hipótese. É o próprio sorriso de Fernando Henrique
que está em questão. Como se
sabe, o presidente sorri muito.
Alguns chargistas, como Angeli, exageram, a meu ver, a irregularidade dos dentes de FHC.
Retratam-no como uma espécie de jacaré depois da reengenharia empresarial.
Reengenharia rima com reeleição. Pensando em dentaduras novas para todos, o presidente pensa num novo mandato, em que pudesse sorrir
mais e melhor. "Sem medo de
ser feliz", o slogan de Lula, numa campanha eleitoral passada, precisa de mais dentes para que FHC o transfira integralmente para a vida prática
e a regularidade ortodentária.
Há ainda uma quarta hipótese. Por volta de 1974 ou 1975,
o país estava entusiasmado
com a "abertura" do presidente Geisel.
O caminho para a democracia aparentava estar sendo
conduzido com mão firme.
Houve então um famoso discurso, em que Geisel frustrou
as esperanças dos democratas,
dizendo que nunca haveria democracia real no país enquanto a maioria da população fosse desdentada. O que é até certo ponto verdade, mas não deixava de ser pretexto para prolongar o regime autoritário.
Será que no inconsciente cardosiano a menção a dentaduras não tem algo a ver com a
frase de Geisel? É como se FHC
estivesse dizendo: "Enquanto
houver alguém sem dentes, justifica-se minha presença no
poder...". Dentadura rimaria
então, obviamente, com ditadura.
Mas não confundo ditadura
com reeleição. Obviamente,
são processos distintos, e nem
sequer chego a ser contrário ao
direito de um governante tentar se reeleger. As tentativas da
Comissão de Justiça da Câmara para abolir os dois turnos
excedem um pouco minha capacidade de tolerância, mas o
inconsciente de FHC pode estar sendo interpretado corretamente pelos puxa-sacos de
plantão.
"Dentaduras duplas! Inda
não sou bem velho para merecer-vos... Há que contentar-me
com uma ponte móvel e esparsas coroas", dizia o poeta
Drummond nos anos 40. A reeleição, para Fernando Henrique, é uma dentadura dupla;
melhor, em todo caso, do que a
"esparsa coroa" em que ele está refestelado.
Ou será que não? Há um monarquismo informal, benévolo
e dúbio, em FHC; a reeleição
duplica, com toques oligárquicos, o presidencialismo. As
mandíbulas das caveiras dos
mortos em Eldorado dos Carajás estalam, como num aplauso sinistro.
A teoria da dependência, a
sociologia de FHC, foi sempre
crítica a respeito do "dualismo" -a idéia de um Brasil
moderno contra o Brasil arcaico. Substituiu esse dualismo
por uma duplicidade; o arcaico e o moderno articulam-se,
como a arcada superior e a arcada inferior de uma dentadura. Os outros que roam esse osso.
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