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A outra face, Jorgina na minha cabeça
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Curiosidade visual nesse episódio que terminou com a prisão da advogada Jorgina de
Freitas: a comparação de suas
fotos, da Baixada Fluminense
para Miami.
Ela não só mudou como também estimulou nossa imaginação, quase como naquele filme
do Travolta, em que as pessoas
mudam totalmente de rosto.
Os cabelos de Jorgina ficaram
mais encorpados, surgiram
marcas mais salientes, olhos
maiores, rasgados.
Para a imprensa, ela, fugitiva da Justiça, fez tudo isso apenas para se disfarçar. Versão
plausível, se a reduzirmos a
uma fugitiva. Mas olhando-a
como mulher, sentimos que estava esculpindo um novo rosto
e estava muito mais segura dele do que nas velhas fotos do
tempo em que advogava na
Baixada.
A nova face de Jorgina deve
ter feito muita gente sonhar
com as imensas possibilidades
que a cirurgia plástica desbravou nos últimos anos. Michael
Jackson é um exemplo vivo
dessa tendência de se redesenhar radicalmente, sem perder
o contato com a imagem anterior. Jorgina e Michael Jackson
têm milhões de dólares e isso
confere a eles um poder pessoal
de se aproximarem de uma
fantasia que têm de si mesmo,
de se esculpirem a partir de
suas características plásticas.
Jorgina tinha, se são verdadeiras as acusações contra ela,
dinheiro suficiente para se tornar irreconhecível e comprar
novos documentos. Não levou
às últimas consequências a lógica de fugitiva. Mas levou a
de mulher que queria mudar
seu rosto, tornar-se mais bela.
Grande parte das pessoas
prefere envelhecer deixando
que os cabelos embranqueçam,
que as rugas se definam. É
uma opção de beleza, às vezes
uma opção ética. Mas quem
pode condenar algumas pequenas mudanças, sentidas
com uma grande melhoria, levantando o astral do paciente?
A trajetória de Jorgina mostra que essa flexibilidade foi
impulsionada pelo dinheiro e
por um deslocamento para
Miami. Mas quem pode prever
que, no futuro, essas chances
continuarão apenas entre os
ricos? Um aumento de produtividade, uma necessária ampliação do mercado não abririam as clínicas para um cliente com pouca grana?
O rosto de Miami não é apenas produto dos dólares, mas
também de novas informações.
É muito possível que essas informações, por meio dos astros
da TV, acabe chegando antes
que a própria baixa de preços.
Se contarmos que a clonagem humana ainda está longe
do horizonte e pode ser evitada, o redesenho da face passa a
ser uma das conquistas típicas
deste século. Sempre houve algum tipo de operação e as máscaras desempenhavam um papel que não desempenham
mais hoje. Mas a história de
Jorgina é também uma página
da ciência, além de ser um fato
policial.
Pode-se argumentar que era
mais bonita na Baixada, que,
de certa forma, embranqueceu
como Michael Jackson. Isso é
também uma consideração político-moral. Cada pequena
modificação expressa um certo
ideal de beleza.
Mas a verdade também é que
ela tinha outras alternativas,
poderia mudar em outra direção, que resta sua capacidade
de mudar o rosto, esse passo
novo no fim do século, o desejo
humano de ser o outro, aproximando-se ao mesmo tempo do
ideal de si mesmo.
Uma súbita fortuna, arrancada de aposentadorias falsas,
talvez seja apenas a história de
um novo rico. Mas pode-se vislumbrar, por meio desse ângulo que momentaneamente encobre o lado policial do fato, os
contornos de um possível futuro. Um tempo em que a combinação de práticas ancestrais,
como o piercing, e a mais sofisticada cirurgia plástica atualize o fracasso humano na sua
busca da eterna juventude, reduzindo-a a um encontro com
o possível.
A busca da eterna juventude
pode fortalecer a tendência de
anular os traços da velhice, de
negar a beleza dos anos do rosto. Isto já se manifesta na série
de cirurgias do próprio Michael Jackson, que, às vezes, dá
a impressão de querer se congelar numa idade. Seria necessário contrabalançar essa busca estéril, com a felicidade de
milhares de pessoas que corrigiram alguns traços de seu rosto, ou mesmo os que foram
mais radicais e mudaram de
sexo.
Vamos ver, talvez, no princípio do século 21, um outro passo: caras e corpos transformados se acoplando a pequenas
máquinas, cérebros artificiais.
Ainda há tempo para se preparar para essas mudanças. Mas
desde já é bom ter Jorgina em
nossa mente.
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