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CARLOS HEITOR CONY
Dos perigos de pecar contra a castidade
Lá atrás, muito além de um
tempo que a memória já devia ter
esquecido, fui educado para ser
casto em pensamentos, palavras e
obras. Ensinaram-me alguns macetes para resistir às tentações da
carne. E o mais eficiente deles era
o olhar, ou melhor, o não-olhar.
Todos os dias alguém me lembrava que São Luiz Gonzaga, padroeiro da juventude e patrono
da castidade universal, não olhava sequer para a própria mãe,
Branca de Castela, que também
foi canonizada pela excelência de
suas virtudes.
Outro exemplo que me davam
era de um santo cujo nome não
guardei. Ao contrário de São Luiz,
cuja mãe também era santa, este
tinha um pai que julgava o filho
um maricas, incentivava-o ao pecado. Colocava prostitutas na cama dele, esperando que uma delas decidisse a parada e fizesse do
rapaz um homem.
Resistindo às ciladas, o jovem
continuava puro. Até que o pai
mandou que o amarrassem, nu, e
contratou cinco profissionais que
deveriam, nuas também, incendiar aquela carne virgem, obrigando-a a tremer no primeiro orgasmo. O pai pensava que, experimentando a coisa, o rapaz tomasse jeito na vida e fosse à luta sem
necessidade de tal e tamanho adjutório.
Que a parada foi dura, foi. O garoto ficou nu, amarrado a uma
coluna do seu quarto. As mulheres começaram a dançar em torno
dele, a acariciá-lo. Indefeso, sem
poder usar as mãos e os pés para
afugentá-las, ele resistiu bravamente até que uma das mulheres
o tocou de tal forma que o desejo
subiu-lhe pelo sangue.
Até então, resistira ao assédio
com orações e pios pensamentos.
Mas a carne, finalmente tocada,
era imperiosa, atingira um ponto
de não-retorno. Somente a dor da
carne poderia vencer o prazer da
carne.
Foi então que, para não pecar,
ele começou a morder a própria
língua. O sangue espirrou de sua
boca e ele cuspiu os pedaços de
sua língua em cima da mulher
que estava mais próxima e tentava fazê-lo gozar. Horrorizada, a
mulher deu um grito e se afastou,
afastando as demais. A virtude
vencera o pecado.
Penso muito nesses dois pios
exemplos, que felizmente nunca
segui. Olhava para a minha mãe
como qualquer filho olha para a
sua, por esse lado a porca nunca
torceu o rabo. Olhei também para
a mãe dos outros -com melhores
resultados. Admito que houve casos em que a coisa engrossou e,
entre mortos e feridos, tive o meu
quinhão.
Acontece que o tempo passou,
meus amigos envelheceram e suas
respectivas mães também, e mais.
Desse mato não mais sairia nenhum cachorro.
O diabo é que sobrou muita tentação que continua invadindo
meu olhar até hoje rebelde à castidade. Evidente que, embora sendo um cidadão de escassa vida social, obrigo-me a um comportamento que não me dê problemas
com a polícia, nem crie constrangimento para mim e para ninguém.
Não deixa de ser um suplício,
dos mais estúpidos, por sinal. Outro dia, em Porto Alegre, numa
universidade local, fui entrevistado por uma jovem muito bonitinha, pareceu-me inteligente e doce, em geral recebemos perguntas
banais ou idiotas, ela até que não
deu nenhum fora, boa profissional, não foi além nem ficou
aquém. Numa avaliação também
profissional, eu lhe daria nota
máxima, ou melhor, nota quase
máxima, descontando-lhe uns décimos por conta da minissaia que
ela usava.
Horror e mais horror! -como
naquele poema do Castro Alves
sobre os navios negreiros que traziam os escravos da África sob
tortura. Passei 15 minutos sob tortura, tortura abominável, obrigando-me a não olhar as suas
pernas.
O sujeito que operava a câmara,
um perfeccionista, a toda hora fazia um gesto com a mão, pedindo-me que nos aproximássemos
mais, cada vez mais, queria obter
um campo intimista. A moça cruzou as pernas, inteiramente nuas,
não se via mais nenhum vestígio
da saia que sumira, era uma nudez forte e jovem que quase ia subindo por cima de mim.
Um suplício do qual ela não tinha culpa, mas, que diabo, que
culpa tenho eu de não ser casto
como São Luiz Gonzaga, nem herói como o outro santo que esmigalhou a própria língua para derrotar, com a dor, o prazer que não
queria sentir?
Preocupado em encarar aquele
olho negro e misterioso da câmara, evitando a duras penas olhar
para o lado e para baixo, balbuciei minhas respostas sentindo
que estava dando um duplo vexame.
Sem poder concentrar-me, disse
qualquer coisa sobre qualquer assunto, na base de afirmações categóricas: o cavalo branco de Napoleão era branco, não façamos aos
outros aquilo que não queremos
que façam com a gente. Desfilei
umas 15 verdades desse gênero, é
possível que tenha até feito um
apelo pela concórdia dos povos e
pelo desarmamento dos espíritos.
O segundo vexame foi a consciência de que, apesar do meu esforço em disfarçar, era impossível
que não percebessem que meu
pensamento, mais livre e mais sábio do que o olhar, estava fazendo
o que era de sua obrigação. Felizmente, a moça levantou. Eu também. Estava exausto, como após
uma posse inesperada e absurda.
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