São Paulo, Sexta-feira, 10 de Dezembro de 1999


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CARLOS HEITOR CONY
Dos perigos de pecar contra a castidade

Lá atrás, muito além de um tempo que a memória já devia ter esquecido, fui educado para ser casto em pensamentos, palavras e obras. Ensinaram-me alguns macetes para resistir às tentações da carne. E o mais eficiente deles era o olhar, ou melhor, o não-olhar.
Todos os dias alguém me lembrava que São Luiz Gonzaga, padroeiro da juventude e patrono da castidade universal, não olhava sequer para a própria mãe, Branca de Castela, que também foi canonizada pela excelência de suas virtudes.
Outro exemplo que me davam era de um santo cujo nome não guardei. Ao contrário de São Luiz, cuja mãe também era santa, este tinha um pai que julgava o filho um maricas, incentivava-o ao pecado. Colocava prostitutas na cama dele, esperando que uma delas decidisse a parada e fizesse do rapaz um homem.
Resistindo às ciladas, o jovem continuava puro. Até que o pai mandou que o amarrassem, nu, e contratou cinco profissionais que deveriam, nuas também, incendiar aquela carne virgem, obrigando-a a tremer no primeiro orgasmo. O pai pensava que, experimentando a coisa, o rapaz tomasse jeito na vida e fosse à luta sem necessidade de tal e tamanho adjutório.
Que a parada foi dura, foi. O garoto ficou nu, amarrado a uma coluna do seu quarto. As mulheres começaram a dançar em torno dele, a acariciá-lo. Indefeso, sem poder usar as mãos e os pés para afugentá-las, ele resistiu bravamente até que uma das mulheres o tocou de tal forma que o desejo subiu-lhe pelo sangue.
Até então, resistira ao assédio com orações e pios pensamentos. Mas a carne, finalmente tocada, era imperiosa, atingira um ponto de não-retorno. Somente a dor da carne poderia vencer o prazer da carne.
Foi então que, para não pecar, ele começou a morder a própria língua. O sangue espirrou de sua boca e ele cuspiu os pedaços de sua língua em cima da mulher que estava mais próxima e tentava fazê-lo gozar. Horrorizada, a mulher deu um grito e se afastou, afastando as demais. A virtude vencera o pecado.
Penso muito nesses dois pios exemplos, que felizmente nunca segui. Olhava para a minha mãe como qualquer filho olha para a sua, por esse lado a porca nunca torceu o rabo. Olhei também para a mãe dos outros -com melhores resultados. Admito que houve casos em que a coisa engrossou e, entre mortos e feridos, tive o meu quinhão.
Acontece que o tempo passou, meus amigos envelheceram e suas respectivas mães também, e mais. Desse mato não mais sairia nenhum cachorro.
O diabo é que sobrou muita tentação que continua invadindo meu olhar até hoje rebelde à castidade. Evidente que, embora sendo um cidadão de escassa vida social, obrigo-me a um comportamento que não me dê problemas com a polícia, nem crie constrangimento para mim e para ninguém.
Não deixa de ser um suplício, dos mais estúpidos, por sinal. Outro dia, em Porto Alegre, numa universidade local, fui entrevistado por uma jovem muito bonitinha, pareceu-me inteligente e doce, em geral recebemos perguntas banais ou idiotas, ela até que não deu nenhum fora, boa profissional, não foi além nem ficou aquém. Numa avaliação também profissional, eu lhe daria nota máxima, ou melhor, nota quase máxima, descontando-lhe uns décimos por conta da minissaia que ela usava.
Horror e mais horror! -como naquele poema do Castro Alves sobre os navios negreiros que traziam os escravos da África sob tortura. Passei 15 minutos sob tortura, tortura abominável, obrigando-me a não olhar as suas pernas.
O sujeito que operava a câmara, um perfeccionista, a toda hora fazia um gesto com a mão, pedindo-me que nos aproximássemos mais, cada vez mais, queria obter um campo intimista. A moça cruzou as pernas, inteiramente nuas, não se via mais nenhum vestígio da saia que sumira, era uma nudez forte e jovem que quase ia subindo por cima de mim.
Um suplício do qual ela não tinha culpa, mas, que diabo, que culpa tenho eu de não ser casto como São Luiz Gonzaga, nem herói como o outro santo que esmigalhou a própria língua para derrotar, com a dor, o prazer que não queria sentir?
Preocupado em encarar aquele olho negro e misterioso da câmara, evitando a duras penas olhar para o lado e para baixo, balbuciei minhas respostas sentindo que estava dando um duplo vexame.
Sem poder concentrar-me, disse qualquer coisa sobre qualquer assunto, na base de afirmações categóricas: o cavalo branco de Napoleão era branco, não façamos aos outros aquilo que não queremos que façam com a gente. Desfilei umas 15 verdades desse gênero, é possível que tenha até feito um apelo pela concórdia dos povos e pelo desarmamento dos espíritos.
O segundo vexame foi a consciência de que, apesar do meu esforço em disfarçar, era impossível que não percebessem que meu pensamento, mais livre e mais sábio do que o olhar, estava fazendo o que era de sua obrigação. Felizmente, a moça levantou. Eu também. Estava exausto, como após uma posse inesperada e absurda.


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