São Paulo, sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

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Barricadas do amor

Divulgação
Michael Pitt e Eva Green em cena de "Os Sonhadores", que chega hoje aos cinemas do Brasil


Bernardo Bertolucci recupera a nostalgia de uma nova revolução em "Os Sonhadores"

BOB FLYNN
DO "INDEPENDENT"

O cineasta italiano Bernardo Bertolucci desce a curva branca do passeio de frente para o mar em San Sebastián (Espanha) parecendo muito mais velho do que os 63 anos que tem.
O diretor de marcos do cinema como "Antes da Revolução" (64) e "O Conformista" (70), que alcançou a fama mundial com o várias vezes oscarizado "O Último Imperador" (87) e a infâmia universal com "O Último Tango em Paris" (72), se apóia numa bengala e dirige um sorriso cansado à multidão de fotógrafos.
Em setembro passado, o ex-"enfant terrible" foi ao Festival de Cinema de San Sebastián para promover seu 22º filme, "Os Sonhadores", adaptado do romance de Gilbert Adair "The Holy Innocents", que agora estréia no Brasil. Bertolucci pode ser um "enfant" um tanto quanto envelhecido, mas seu novo filme se reconhece como uma volta dele à sua forma e uma tentativa de recuperar memórias de sua juventude, imersa em radicalismo dos anos 60, sexo e flashbacks cinematográficos.
Embora o filme tenha sido saudado como a volta por cima de Bertolucci, o diretor parece decididamente soturno -estado de ânimo que não foi ajudado por um disco compactado e deslocado, mas que também é conseqüência de ele se ver, mais uma vez, lutando contra as tesouras do estúdio e da censura, que ameaçaram ou fazer cortes drásticos no conteúdo sexual explícito do filme ou condenar "Os Sonhadores" à sentença de morte comercial de uma classificação NC-17 nos EUA, que, na prática, exclui o público vital dos menores de 17.
Os tumultos e a política revolucionária dos anos 60 constituem o pano de fundo de cenas de nudez, masturbação e a perda de virgindade da heroína, Isabelle, representada por Eva Green, uma pálida parisiense que é o ponto focal das atenções carnais de seu sorumbático irmão gêmeo, Theo (Louis Garrel), e de um estudante americano recém-chegado a Paris, Matthew (Michael Pitt).
"Eu estava preparando uma seqüência de "1900", para atualizar a história da Itália", diz Bertolucci, referindo-se a seu épico sobre a história italiana, produzido em 1976. "Mas li o livro de Gilbert. Era tão fiel ao clima dos anos 60... Essa foi uma época que conheci bem e me identifiquei profundamente com a história e seus personagens. Quis voltar àquele tempo e fazê-lo reviver. Queria reencontrar aquele clima."
A campanha de Bertolucci antimutilação funcionou, e "Os Sonhadores" vai ser lançado em versão sem cortes. É a primeira vez em seis anos que um grande estúdio assume um risco desse tipo. "A distribuidora Fox sempre gostou do filme", disse Bertolucci, "e fico muito satisfeito por ela lançar a versão original. Como eu sempre falei, um orgasmo é melhor do que uma bomba".
"Os Sonhadores" é um filme fortemente pessoal -se bem que, em parte pelo fato de o próprio Bertolucci ter quebrado tantos tabus nos anos 70, as cenas de sexo já não choquem.
Mas o longa-metragem é carregado de referências cinematográficas, e sua trilha sonora é repleta de Jimi Hendrix e The Doors, lançando um olhar para trás, muito mais do que para o futuro. Bertolucci explica: "Tantas e tantas vezes a nostalgia é vista em sentido negativo, mas eu sinto saudades, sim, do idealismo. Acho que podemos ser nostálgicos sem sermos sentimentais. Hoje não seria possível fazer os filmes que fazíamos nos anos 60 e 70 -o clima não é apropriado".
"Não sou um cineasta político, mas a política está em meus filmes, é verdade", declara. "Mas tenho me sentido cada vez menos instigado pela política. Hoje em dia a política chega destituída de qualquer ideologia."
Entretanto, 1968 foi uma primavera falsa, o establishment venceu e, hoje, a impressão que se tem é que aquela época foi um breve período de idealismo social e liberação pessoal tão exóticos e inacreditáveis quanto Camelot. "É verdade que a revolução não aconteceu", concorda Bertolucci. "Sob esse aspecto, o movimento dos anos 60 foi um fracasso. Mas, sob muitos outros, foi um fenômeno social. Foi o início do feminismo. Foi uma época muito importante. As coisas mudaram, sim."

Tradução de Clara Allain


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