São Paulo, sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

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CRÍTICA

Filme revela capacidade do cinema de substituir a vida

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em "Os Sonhadores" há duas míticas superpostas. A primeira, da cinefilia parisiense. A segunda, a de Maio de 68.
Cinéfilos são esses malucos que passam o dia vendo filmes. Formam uma espécie de comunidade meio à parte do mundo. Reza a lenda que Maio de 68 começou na Cinemateca Francesa, quando o ministro da Cultura André Malraux decidiu demitir Henri Langlois, o fundador da instituição.
Houve greve de cineastas, a cinemateca fechou. Resumindo: como em Paris não há coisa mais séria que o cinema, Malraux enfiou a viola no saco e Langlois voltou à Cinemateca. É nessa crise que o estudante americano Matthew conhece Isabelle, ou Eva Green, que promete ser o rosto mais sublime do cinema na próxima década. Ela está acompanhada do irmão, Theo. Ambos são cinéfilos doentes. Com a cinemateca fechada, nada ocorre aos irmãos exceto retirar Matthew de sua pensão e levá-lo ao apartamento em que vivem. E, como não há filmes na cinemateca, nada lhes resta senão começar a viver.
É o aspecto mais intrigante deste filme: essa capacidade do cinema de substituir a vida, ao mesmo tempo em que cria modelos para a vida imitar. Só porque não há filmes, os três se entregam a uma intensa amizade, em que o caráter incestuoso da ligação dos irmãos (mais do que incesto, é um caso de irmãos siameses de sexos diferentes: são dois, mas são um) e a relação com Matthew se intensificam. É o aspecto escandaloso da história. Há outro: tudo se passa sob o signo do cinema.
Homenagem de Bertolucci ao Maio de 68, "Os Sonhadores" aproxima dois tipos de sonhos, os que se produzem dentro do cinema e os produzidos nas ruas. Como se ao fim perguntasse do que Maio de 68 salvou uma geração (não só os cinéfilos). Da loucura, talvez? Pode ser: logo no início as imagens que correm na tela são as do "Shock Corridor", de Samuel Fuller. E a história da juventude no pós-guerra talvez esteja condensada nessa passagem da insânia reprimida nos hospícios à sanidade libertária obtida nas ruas.
Ao final, "Os Sonhadores" chega tão embebido em mitos que já não sabemos se vemos uma mitologia (a de 68) envolta em outra (a da cinefilia) ou se é o fantasma insepulto de um velho cinema que reaparece, mais ou menos como Drácula, essa carcaça morta a que só a imagem dá vida.


Os Sonhadores
The Dreamers
   
Direção: Bernardo Bertolucci
Produção: ITA/FRA/ING/EUA, 2003
Com: Michael Pitt, Eva Green
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Lumière e circuito



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