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CRÍTICA
Filme revela capacidade do cinema de substituir a vida
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Em "Os Sonhadores" há duas
míticas superpostas. A primeira, da cinefilia parisiense. A
segunda, a de Maio de 68.
Cinéfilos são esses malucos que
passam o dia vendo filmes. Formam uma espécie de comunidade meio à parte do mundo. Reza a
lenda que Maio de 68 começou na
Cinemateca Francesa, quando o
ministro da Cultura André Malraux decidiu demitir Henri Langlois, o fundador da instituição.
Houve greve de cineastas, a cinemateca fechou. Resumindo:
como em Paris não há coisa mais
séria que o cinema, Malraux enfiou a viola no saco e Langlois voltou à Cinemateca. É nessa crise
que o estudante americano Matthew conhece Isabelle, ou Eva
Green, que promete ser o rosto
mais sublime do cinema na próxima década. Ela está acompanhada do irmão, Theo. Ambos são cinéfilos doentes. Com a cinemateca fechada, nada ocorre aos irmãos exceto retirar Matthew de
sua pensão e levá-lo ao apartamento em que vivem. E, como
não há filmes na cinemateca, nada
lhes resta senão começar a viver.
É o aspecto mais intrigante deste filme: essa capacidade do cinema de substituir a vida, ao mesmo
tempo em que cria modelos para
a vida imitar. Só porque não há
filmes, os três se entregam a uma
intensa amizade, em que o caráter
incestuoso da ligação dos irmãos
(mais do que incesto, é um caso
de irmãos siameses de sexos diferentes: são dois, mas são um) e a
relação com Matthew se intensificam. É o aspecto escandaloso da
história. Há outro: tudo se passa
sob o signo do cinema.
Homenagem de Bertolucci ao
Maio de 68, "Os Sonhadores"
aproxima dois tipos de sonhos, os
que se produzem dentro do cinema e os produzidos nas ruas. Como se ao fim perguntasse do que
Maio de 68 salvou uma geração
(não só os cinéfilos). Da loucura,
talvez? Pode ser: logo no início as
imagens que correm na tela são as
do "Shock Corridor", de Samuel
Fuller. E a história da juventude
no pós-guerra talvez esteja condensada nessa passagem da insânia reprimida nos hospícios à sanidade libertária obtida nas ruas.
Ao final, "Os Sonhadores" chega tão embebido em mitos que já
não sabemos se vemos uma mitologia (a de 68) envolta em outra (a
da cinefilia) ou se é o fantasma insepulto de um velho cinema que
reaparece, mais ou menos como
Drácula, essa carcaça morta a que
só a imagem dá vida.
Os Sonhadores
The Dreamers
Direção: Bernardo Bertolucci
Produção: ITA/FRA/ING/EUA, 2003
Com: Michael Pitt, Eva Green
Quando: a partir de hoje nos cines
Bristol, Lumière e circuito
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