São Paulo, sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005

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CRÍTICA/FILME

Diretor cria seu próprio Hughes e assume riscos com DiCaprio

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO

Se existe alguém que tenha vivido exemplarmente todas as contradições da vida americana no século 20, este sujeito é Howard Hughes. Para ele convergem as principais obsessões da modernidade, entre as quais o cinema e a aviação, enquanto os ideais puritanos de trabalho e auto-aperfeiçoamento se mesclam sem pudores às técnicas do gangsterismo.
Por fim, o individualismo heróico e inescrupuloso dará lugar à misantropia e à paranóia, como se a reclusão do velho Hughes, protegido em sua casa por mórmons, fosse o desfecho moral de uma longa fábula verdadeira.
Scorsese não conta o final da história real em "O Aviador". Seu filme abrange 20 anos da vida de Howard Hughes, de 1927 a 1947, aproximadamente. Não é pouco tempo, mas nos poupa de fato da terrível decadência física do personagem e de empreitadas bem sujas que este teria orquestrado para manter o seu império, além do mal explicado envolvimento com o escândalo Watergate.
Há ainda outras coisas que Scorsese deixou de lado. Por exemplo, a bissexualidade de Hughes, que teria feito dele um amigo tão fervoroso de Audrey Hepburn quanto de Cary Grant, além de freqüentador de sessões sadomasoquistas em San Francisco.
"O Aviador" não é, porém, um documentário, e sim uma ficção. E uma ficção autoral, para deixar bem claro que, embora o personagem não tenha saído da imaginação do diretor, o Hughes de Scorsese é uma criação cinematográfica, uma idéia de cinema.
Como idéia de cinema, "O Aviador" tem menos a ver com Hughes do que com Charles Foster Kane. "Cidadão Kane" (1941) inaugurou o cinema moderno e é uma obsessão de todo grande diretor. Este ilustre antecedente é a inspiração e o contraponto de Scorsese. "O Aviador" terá até mesmo a sua palavra-mito, como foi "Rosebud" para o filme de Welles: "Q.U.A.R.E.N.T.E.N.A.".
A palavra será pronunciada na cena inicial do filme, quando a mãe de Hughes, obcecada por doenças contagiosas, dá banho no filho de 11 anos, aconselhando-o a respeito dos perigos do mundo.
A partir da cena, Scorsese constrói a contradição central do personagem: o medo da contaminação e da morte, transmitido tão eroticamente pela mãe, faz de Hughes um tipo extraordinário. Por detrás da pele de capitalista imoral, ele guardará uma sensibilidade artística e uma atração voluptuosa pelo vôo e pela velocidade -variante do desejo de evasão.
Ao contrário de Welles, que transforma "Cidadão Kane" em uma das maiores tragédias americanas, Scorsese prefere ver vantagens em Hughes -além de artista, ele conteria o espírito pioneiro que produziu a América.
No filme, poucos saberão enxergar nele uma coisa e outra. Aos olhos dos capitalistas, todos insensíveis, inclusive os de Hollywood, Hughes não passa de um louco quando ele busca a perfeição ao realizar o seu filme "Hell's Angels" (anjos do inferno) ou ao construir um modelo de avião.
Ao contrário de Welles, também, Scorsese preferiu evitar todo experimentalismo e adotou um cinema de feitio clássico, mesmo nos momentos de alucinação de Hughes -que estão entre os melhores de "O Aviador".
As cenas revelam a incrível maturação de Leonardo DiCaprio como ator, que enfrenta neste filme toda sorte de dificuldades -e se sai bem na conta final.
Realizar o filme com DiCaprio foi um enorme risco para Scorsese. DiCaprio é um intérprete elegante e dedicado, mas cuja voz e cujo rosto se recusam a envelhecer, apesar de seus 30 anos. A jovialidade do ator é um ótimo dínamo para o início do filme, mas à medida que passa o tempo e Hughes se abisma em suas obsessões, os problemas aumentam.
Scorsese e DiCaprio assumem todos os riscos, e um dos aspectos mais interessantes deste filme é a luta de ambos para transfigurar a feição do ator à medida em que vão aparecendo no personagem as demandas do envelhecimento, da doença e da loucura.


O Aviador
The Aviator
    
Direção: Martin Scorsese
Produção: EUA, 2004
Com: Leonardo DiCaprio, Cate Blanchett Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Iguatemi e circuito


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