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CRÍTICA/FILME
Diretor cria seu próprio Hughes e assume riscos com DiCaprio
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO
Se existe alguém que tenha vivido exemplarmente todas as
contradições da vida americana
no século 20, este sujeito é Howard Hughes. Para ele convergem
as principais obsessões da modernidade, entre as quais o cinema e a
aviação, enquanto os ideais puritanos de trabalho e auto-aperfeiçoamento se mesclam sem pudores às técnicas do gangsterismo.
Por fim, o individualismo heróico e inescrupuloso dará lugar à
misantropia e à paranóia, como se
a reclusão do velho Hughes, protegido em sua casa por mórmons,
fosse o desfecho moral de uma
longa fábula verdadeira.
Scorsese não conta o final da
história real em "O Aviador". Seu
filme abrange 20 anos da vida de
Howard Hughes, de 1927 a 1947,
aproximadamente. Não é pouco
tempo, mas nos poupa de fato da
terrível decadência física do personagem e de empreitadas bem
sujas que este teria orquestrado
para manter o seu império, além
do mal explicado envolvimento
com o escândalo Watergate.
Há ainda outras coisas que
Scorsese deixou de lado. Por
exemplo, a bissexualidade de Hughes, que teria feito dele um amigo tão fervoroso de Audrey Hepburn quanto de Cary Grant, além
de freqüentador de sessões sadomasoquistas em San Francisco.
"O Aviador" não é, porém, um
documentário, e sim uma ficção.
E uma ficção autoral, para deixar
bem claro que, embora o personagem não tenha saído da imaginação do diretor, o Hughes de
Scorsese é uma criação cinematográfica, uma idéia de cinema.
Como idéia de cinema, "O Aviador" tem menos a ver com Hughes do que com Charles Foster
Kane. "Cidadão Kane" (1941)
inaugurou o cinema moderno e é
uma obsessão de todo grande diretor. Este ilustre antecedente é a
inspiração e o contraponto de
Scorsese. "O Aviador" terá até
mesmo a sua palavra-mito, como
foi "Rosebud" para o filme de
Welles: "Q.U.A.R.E.N.T.E.N.A.".
A palavra será pronunciada na
cena inicial do filme, quando a
mãe de Hughes, obcecada por
doenças contagiosas, dá banho no
filho de 11 anos, aconselhando-o a
respeito dos perigos do mundo.
A partir da cena, Scorsese constrói a contradição central do personagem: o medo da contaminação e da morte, transmitido tão
eroticamente pela mãe, faz de Hughes um tipo extraordinário. Por
detrás da pele de capitalista imoral, ele guardará uma sensibilidade artística e uma atração voluptuosa pelo vôo e pela velocidade
-variante do desejo de evasão.
Ao contrário de Welles, que
transforma "Cidadão Kane" em
uma das maiores tragédias americanas, Scorsese prefere ver vantagens em Hughes -além de artista, ele conteria o espírito pioneiro
que produziu a América.
No filme, poucos saberão enxergar nele uma coisa e outra. Aos
olhos dos capitalistas, todos insensíveis, inclusive os de Hollywood, Hughes não passa de um
louco quando ele busca a perfeição ao realizar o seu filme "Hell's
Angels" (anjos do inferno) ou ao
construir um modelo de avião.
Ao contrário de Welles, também, Scorsese preferiu evitar todo
experimentalismo e adotou um
cinema de feitio clássico, mesmo
nos momentos de alucinação de
Hughes -que estão entre os melhores de "O Aviador".
As cenas revelam a incrível maturação de Leonardo DiCaprio
como ator, que enfrenta neste filme toda sorte de dificuldades -e
se sai bem na conta final.
Realizar o filme com DiCaprio
foi um enorme risco para Scorsese. DiCaprio é um intérprete elegante e dedicado, mas cuja voz e
cujo rosto se recusam a envelhecer, apesar de seus 30 anos. A jovialidade do ator é um ótimo dínamo para o início do filme, mas à
medida que passa o tempo e Hughes se abisma em suas obsessões,
os problemas aumentam.
Scorsese e DiCaprio assumem
todos os riscos, e um dos aspectos
mais interessantes deste filme é a
luta de ambos para transfigurar a
feição do ator à medida em que
vão aparecendo no personagem
as demandas do envelhecimento,
da doença e da loucura.
O Aviador
The Aviator
Direção: Martin Scorsese
Produção: EUA, 2004
Com: Leonardo DiCaprio, Cate Blanchett
Quando: a partir de hoje nos cines
Bristol, Iguatemi e circuito
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