São Paulo, quarta, 11 de fevereiro de 1998

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A ilegalidade e utilidade supérflua do celular no carro

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Já escrevi sobre o código de trânsito e não vou voltar ao assunto. Mas observo que uma coisa, definitivamente, não pegou na nova lei. É a proibição de dirigir usando o celular. Todo mundo (isto é, todos os que têm celular) continua falando e falando enquanto governa suavemente, em desvios de direção hidráulica, seus carros japoneses.
São em geral japoneses, os carros, e pretos; como se, em pleno meio-dia, na avenida Brasil, fosse continuamente noite. Há algo de boate escusa nesses Subarus e Nissans. O próprio celular, que se acende quando ligado, emite verdes, azuis e roxos de néon.
Esse aparelho tem uma aura ilegal. Não me surpreende que seus usuários façam pouco do código de trânsito. Há algo de clandestino no celular. Quem fala no celular está alguns graus acima -ou abaixo- da lei.
Essas são impressões pessoais, claro, vindas de alguém que não usa celular. Antes de desenvolver o raciocínio, vale a pena fazer uma advertência ao leitor. No começo, achei que minha antipatia pelo celular era passageira. Tive a mesma reação diante da secretária eletrônica, do fax, e -cáspite!- diante do videocassete. Luxos imorais, dizia o puritano dentro de mim.
Claro que acabei me acostumando a essas novidades técnicas. Calculei então que, depois de alguns meses de estranhamento, o celular também se tornaria uma coisa natural para mim, vencendo a reação epidérmica de tecnofobia e caipirice.
Isso não aconteceu. Continuo antipatizando com o celular. Há uma razão material para essa alergia: é que o celular continua caro, enquanto o videocassete e o fax baixaram muito de preço. Ahá, diz o leitor, você não antipatiza com o celular em si, mas sim com os ricos; sua antipatia é ressentimento e culpa... É de um esquerdismo aristocrático, torcendo o nariz...
Sim, mas o raciocínio se inverte. À medida que o celular continua caro, ele se transforma de instrumento útil (o que sem dúvida ele é) em símbolo de status; sua utilidade se torna, digamos assim, supérflua, diante de tudo aquilo que ele representa de inútil.
Tanto é assim, que as conversas pelo celular são em geral mais idiotas do que as conversas pelo telefone comum. No supermercado, a dona de casa usa o celular para saber se o filho chegou da escola. Precisava? Não. Mas ela tem o celular, e este cria suas próprias necessidades. Você está parado no trânsito. O que fazer? Ora, ligue o celular...
Já no interurbano as conversas se cretinizam. "Onde você está?" "Estou em Belém." "Choveu aí?" "Choveu, e aí?" Etc. etc. É o que o linguista Roman Jakobson chamava de "função fática", ou seja, aquela que verifica as condições de comunicação: "está me ouvindo?" "Não, o celular está horrível." Testa-se tanto o aparelho, que a mensagem real carece de importância. Metade das comunicações em celular, imagino, são sobre o próprio celular.
A outra metade... a outra metade é importantíssima. Inadiável. Não estou sendo irônico. Claro que há momentos em que um celular faz falta a quem não tem. Atrasos. Adultérios. Compra de drogas. Acidentes de trânsito. Urgências médicas. Tudo o que precisa ser combinado para acontecer e tudo o que acontece sem combinação nenhuma.
Aí não há nada a ser criticado. Mesmo assim, o aspecto "ilegal" do celular, o que ele tem de abusivo, de folgado, de escandaloso até (para mim) merece comentário.
Todo mundo se lembra -todos estão exaustos de lembrar- do famoso comercial dos cigarros Vila Rica em que Gérson falava do "levar vantagem em tudo". Mas, ou estou muito enganado, ou o comercial teve uma continuação, não mais com Gérson, mas com o ator Carlos Eduardo Dolabella, em que ele continuava a falar das vantagens do Vila Rica.
Nesse anúncio, Dolabella falava com alguém ao telefone. Isso no final dos anos 70. Fazia o papel de um milionário. O telefone era antigo, daqueles de discar. Mas a "milionaridade" de Dolabella se explicitava numa coisa: ele saía andando pela sala, e o fio que o ligava ao aparelho era imenso, espiralado, inesgotável.
Ele saía andando e falando, e o fone não desplugava, nunca perdia o contato. Era uma imagem de poder: assim como um milionário nunca bate no vermelho em sua conta bancária, Dolabella podia caminhar milhas e milhas dentro da sala sem que o fio do telefone se esticasse demais; sem que se esticasse com o poder súbito da corda de uma forca, por exemplo.
Naquele anúncio, que associava a extensão de um fio telefônico ao poder econômico, penunciava-se a necessidade do telefone celular. Por quê? Porque o celular é sinônimo de riqueza?
Acho que o celular corresponde à idéia de riqueza globalizada. Ou seja, pressupõe uma mobilidade gigantesca do capital. A pessoa que fala no celular deixa de ter endereço. Ela pode estar em qualquer lugar, como os dólares de Soros.
O velho telefone era uma invasão no seguinte sentido: quando você liga para alguém, você sabe que ele está dentro de uma casa, que ele possui domicílio fixo, e mesmo ouvindo os sons ambientes é possível perceber o "doméstico", o "escritorial" que circunda a pessoa para quem ligamos.
O celular "desterritorializa" o interlocutor. Ele pode estar em qualquer lugar. Ele pode ligar de qualquer lugar. Isso é quase um convite à impunidade. "Sem domicílio fixo": assim os velhos prontuários policiais caracterizavam os criminosos mais notórios.
A liberdade neoburguesa do celular -estou em nenhum lugar, estou sempre por perto- contrasta com a velha liberdade (melhor chamá-la "autonomia") burguesa do lar indevassável ("meu lar é meu castelo"). É uma liberdade e uma escravidão. O dono do celular é, evidentemente, um escravo do celular. Sente-se mais livre ao ser mais "eficiente" e "moderno"'. Sua prontidão a qualquer chamado é o preço que paga por sua mobilidade, por sua "inencontrabilidade" pessoal -ele pode estar em qualquer lugar do planeta.
O mesmo acontece com os e-mails, os endereços eletrônicos: já não dependem de um lugar físico para serem acionados. Cada indivíduo está em qualquer lugar; experimenta este fato como "liberdade". Torna-se um parafuso a mais na globalização, torna-se dependente de uma tecnologia que, apesar de útil e libertadora, diminui sua liberdade real.
No auge da ilusão, celebra essa perda de liberdade não só com os argumentos do comodismo, mas com os argumentos do "status". E infringe, por exemplo, a lei de trânsito, pois é "livre" para infringi-la e ao mesmo tempo tem a "necessidade", o dever, o trabalho, para justificar sua infração.



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