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A ilegalidade e utilidade supérflua do celular no carro
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Já escrevi sobre o código de
trânsito e não vou voltar ao
assunto. Mas observo que uma
coisa, definitivamente, não pegou na nova lei. É a proibição
de dirigir usando o celular.
Todo mundo (isto é, todos os
que têm celular) continua falando e falando enquanto governa suavemente, em desvios
de direção hidráulica, seus
carros japoneses.
São em geral japoneses, os
carros, e pretos; como se, em
pleno meio-dia, na avenida
Brasil, fosse continuamente
noite. Há algo de boate escusa
nesses Subarus e Nissans. O
próprio celular, que se acende
quando ligado, emite verdes,
azuis e roxos de néon.
Esse aparelho tem uma aura
ilegal. Não me surpreende que
seus usuários façam pouco do
código de trânsito. Há algo de
clandestino no celular. Quem
fala no celular está alguns
graus acima -ou abaixo- da
lei.
Essas são impressões pessoais, claro, vindas de alguém
que não usa celular. Antes de
desenvolver o raciocínio, vale
a pena fazer uma advertência
ao leitor. No começo, achei que
minha antipatia pelo celular
era passageira. Tive a mesma
reação diante da secretária
eletrônica, do fax, e -cáspite!- diante do videocassete.
Luxos imorais, dizia o puritano dentro de mim.
Claro que acabei me acostumando a essas novidades técnicas. Calculei então que, depois de alguns meses de estranhamento, o celular também
se tornaria uma coisa natural
para mim, vencendo a reação
epidérmica de tecnofobia e
caipirice.
Isso não aconteceu. Continuo antipatizando com o celular. Há uma razão material
para essa alergia: é que o celular continua caro, enquanto o
videocassete e o fax baixaram
muito de preço. Ahá, diz o leitor, você não antipatiza com o
celular em si, mas sim com os
ricos; sua antipatia é ressentimento e culpa... É de um esquerdismo aristocrático, torcendo o nariz...
Sim, mas o raciocínio se inverte. À medida que o celular
continua caro, ele se transforma de instrumento útil (o que
sem dúvida ele é) em símbolo
de status; sua utilidade se torna, digamos assim, supérflua,
diante de tudo aquilo que ele
representa de inútil.
Tanto é assim, que as conversas pelo celular são em geral mais idiotas do que as conversas pelo telefone comum.
No supermercado, a dona de
casa usa o celular para saber
se o filho chegou da escola.
Precisava? Não. Mas ela tem o
celular, e este cria suas próprias necessidades. Você está
parado no trânsito. O que fazer? Ora, ligue o celular...
Já no interurbano as conversas se cretinizam. "Onde você
está?" "Estou em Belém."
"Choveu aí?" "Choveu, e
aí?" Etc. etc. É o que o linguista Roman Jakobson chamava
de "função fática", ou seja,
aquela que verifica as condições de comunicação: "está
me ouvindo?" "Não, o celular
está horrível." Testa-se tanto
o aparelho, que a mensagem
real carece de importância.
Metade das comunicações em
celular, imagino, são sobre o
próprio celular.
A outra metade... a outra
metade é importantíssima.
Inadiável. Não estou sendo
irônico. Claro que há momentos em que um celular faz falta
a quem não tem. Atrasos.
Adultérios. Compra de drogas.
Acidentes de trânsito. Urgências médicas. Tudo o que precisa ser combinado para acontecer e tudo o que acontece
sem combinação nenhuma.
Aí não há nada a ser criticado. Mesmo assim, o aspecto
"ilegal" do celular, o que ele
tem de abusivo, de folgado, de
escandaloso até (para mim)
merece comentário.
Todo mundo se lembra -todos estão exaustos de lembrar- do famoso comercial
dos cigarros Vila Rica em que
Gérson falava do "levar vantagem em tudo". Mas, ou estou muito enganado, ou o comercial teve uma continuação,
não mais com Gérson, mas
com o ator Carlos Eduardo
Dolabella, em que ele continuava a falar das vantagens
do Vila Rica.
Nesse anúncio, Dolabella falava com alguém ao telefone.
Isso no final dos anos 70. Fazia
o papel de um milionário. O
telefone era antigo, daqueles
de discar. Mas a "milionaridade" de Dolabella se explicitava numa coisa: ele saía andando pela sala, e o fio que o
ligava ao aparelho era imenso,
espiralado, inesgotável.
Ele saía andando e falando,
e o fone não desplugava, nunca perdia o contato. Era uma
imagem de poder: assim como
um milionário nunca bate no
vermelho em sua conta bancária, Dolabella podia caminhar
milhas e milhas dentro da sala
sem que o fio do telefone se esticasse demais; sem que se esticasse com o poder súbito da
corda de uma forca, por exemplo.
Naquele anúncio, que associava a extensão de um fio telefônico ao poder econômico,
penunciava-se a necessidade
do telefone celular. Por quê?
Porque o celular é sinônimo de
riqueza?
Acho que o celular corresponde à idéia de riqueza globalizada. Ou seja, pressupõe
uma mobilidade gigantesca do
capital. A pessoa que fala no
celular deixa de ter endereço.
Ela pode estar em qualquer lugar, como os dólares de Soros.
O velho telefone era uma invasão no seguinte sentido:
quando você liga para alguém,
você sabe que ele está dentro
de uma casa, que ele possui
domicílio fixo, e mesmo ouvindo os sons ambientes é possível
perceber o "doméstico", o
"escritorial" que circunda a
pessoa para quem ligamos.
O celular "desterritorializa" o interlocutor. Ele pode
estar em qualquer lugar. Ele
pode ligar de qualquer lugar.
Isso é quase um convite à impunidade. "Sem domicílio fixo": assim os velhos prontuários policiais caracterizavam
os criminosos mais notórios.
A liberdade neoburguesa do
celular -estou em nenhum
lugar, estou sempre por perto- contrasta com a velha liberdade (melhor chamá-la
"autonomia") burguesa do
lar indevassável ("meu lar é
meu castelo"). É uma liberdade e uma escravidão. O dono
do celular é, evidentemente,
um escravo do celular. Sente-se mais livre ao ser mais
"eficiente" e "moderno"'.
Sua prontidão a qualquer chamado é o preço que paga por
sua mobilidade, por sua
"inencontrabilidade" pessoal
-ele pode estar em qualquer
lugar do planeta.
O mesmo acontece com os
e-mails, os endereços eletrônicos: já não dependem de um
lugar físico para serem acionados. Cada indivíduo está em
qualquer lugar; experimenta
este fato como "liberdade".
Torna-se um parafuso a mais
na globalização, torna-se dependente de uma tecnologia
que, apesar de útil e libertadora, diminui sua liberdade real.
No auge da ilusão, celebra
essa perda de liberdade não só
com os argumentos do comodismo, mas com os argumentos do "status". E infringe,
por exemplo, a lei de trânsito,
pois é "livre" para infringi-la
e ao mesmo tempo tem a "necessidade", o dever, o trabalho, para justificar sua infração.
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