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O carnaval da crise
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
O passado ilumina o presente. A ofegante epidemia do
Carnaval se aproxima e eu me
recordo de um fato histórico
intrigante.
Primeira Guerra Mundial. Os
combates seguem a rotina de
extermínio e destruição. De repente, como por mágica, cessam as hostilidades. É Natal.
As tropas abandonam as trincheiras e se confraternizam.
Soldados inimigos chegam a
trocar lembranças, moedas e
fotos de família. Finda a trégua, todos voltam a seus postos. Prossegue a carnificina.
Imagine um historiador futuro nos olhando. O Brasil mergulhado em grave crise: o desemprego comendo solto, a besta fera da inflação à solta, o
país perto do abismo. De repente, o que ocorre? A folia toma conta. Ninguém se lembra
de câmbio, dengue ou FMI. A
nação aflita e empobrecida põe
a fantasia e cai no samba. "A
alegria é a prova dos nove."
Vem a quarta-feira, porém, e a
animação esfria. Prossegue o
tormento.
Eu me pergunto: onde o delírio, onde a lucidez? Na guerra
cruenta no seio da civilização
européia ou no lúdico interlúdio natalino? No pesadelo renovado de nosso descaso pela
mais rasteira lógica econômica
(baseado na crença de que enganaríamos o mundo com a
mesma facilidade com que enganamos a nós mesmos) ou na
alegria pré-lógica do corpo tropical?
A euforia coletiva com data
marcada é um milagre da convivência brasileira. É bom lembrar, contudo, que, embora sejamos especialistas de notório
talento e competência na coisa,
a arte de cantar e dançar na
adversidade não é privilégio
nosso -é dom humano. Em
página memorável dos seus
"Ensaios", o iluminista cético
escocês David Hume ilustra e
elucida o processo:
"Informa-nos Trucídides que,
durante a célebre praga de Atenas, quando a morte parecia
estar diante de todos, um júbilo
dissoluto e um ânimo jovial tomaram conta do povo, com as
pessoas se exortando umas às
outras a tirar o máximo proveito da vida enquanto ela durasse. A mesma observação faz
Bocácio com respeito à praga
em Florença... O prazer do momento é sempre importante; e o
que quer que diminua a importância de todas as outras coisas
irá conferir-lhe um valor e influência adicionais".
"Carpe diem". Se o amanhã
ninguém sabe, por que não desfrutar a hora? "Troca por vinho
o amor que não terás./O que esperas, perene o esperarás./O
que bebes, tu bebes./Olha as rosas./Morto, que rosas é que
cheirarás?", indaga o desenganado Fernando Pessoa. Tudo
considerado, por que não viver
cada dia como se fosse o último? Por que não descontar o
futuro a taxas cavalares (como
fazem, aliás, os nosso juros)? É
o que pergunta (e responde) o
genial Assis Valente no samba-choro "E o Mundo Não Se Acabou", gravado por Carmen Miranda para o Carnaval de 1938.
Composto no clima pré-diluviano da época -ameaça de
guerra, boatos sobre cometas,
Estado Novo incipiente, previsões apocalípticas de todo tipo-, o samba se encaixa lindamente no modelo humano e
cai como uma luva para o Carnaval deste ano:
"Anunciaram e garantiram
que o mundo ia se acabar/Por
causa disso a minha gente lá de
casa começou a rezar... acreditei nessa conversa mole; Pensei
que o mundo ia se acabar/E fui
tratando de me despedir/E sem
demora fui tratando de aproveitar/Beijei na boca de quem
não devia/Peguei na mão de
quem não conhecia/Dancei um
samba em traje de maiô/E o tal
mundo não se acabou... Ih! Vai
ter barulho e vai ter confusão/
Porque o mundo não se acabou".
O mundo, ao que parece, custa a acabar; mas a química imprevisível da adversidade faz
milagres. O que poucos sabem,
creio, é que a origem do Carnaval brasileiro, tal como o conhecemos hoje em dia, é tributária de um fenômeno desse tipo.
A adversidade catalisadora,
no caso, não foi uma daquelas
tempestades devastadoras ou
cataclismos econômicos que
nos acometem regularmente
desde que o samba é samba.
Foi uma praga misteriosa importada da Europa ao final da
Primeira Guerra -a gripe espanhola, que dizimou dezenas
de milhares de brasileiros em
poucos dias (os corpos ficavam
empilhados nas sarjetas) e chegou a contaminar 80% da população carioca.
O vírus da gripe acabou vencido pelos anticorpos. Mas o
Carnaval não ficou imune.
Partiu do Rio, a cidade mais
atingida pela peste, como
aponta Ruy Castro, "a maior
resposta que uma epidemia já
conhecera -e uma resposta
bem carioca: o Carnaval de
1919, o primeiro depois da gripe
e o maior Carnaval do século, o
Carnaval da ressurreição".
Foi precisamente aí que o
samba, vale notar, desbancou
os tangos, polcas, fados e valsas
de outros carnavais, para se
tornar, pela primeira vez, o senhor absoluto das avenidas,
praças e salões. "Era como se o
carioca", sugere Castro, movido pelo impulso de desrecalcar
a dor e o trauma do corpo-a-corpo com a morte, "descobrisse finalmente a trilha sonora
ideal para os corsos de carros
abertos e para as batalhas de
confete".
O Carnaval da crise aí está.
Metade de mim delira, metade
de mim pondera. O país assiste
atônito ao formidável enterro
de sua última quimera. A fantasia do real estável, longamente acalentada, ruiu. Como
sempre, não há culpados: apenas injustiçados e incompreendidos. Pena que Stanley Fischer
não tenha ficado para a folia.
Carnaval dos preços, Carnaval dos corpos. Um dia se corre
ao banco, no outro se sacode na
avenida. Há um quê de magia e
terror -de deliciosamente
ambíguo e tragicamente revelador- nessa justaposição entre a nossa encrenca financeira
e a euforia carnavalesca que se
anuncia. "O mundo inteiro espera, hoje é dia do riso chorar."
De certo modo, é como se o
Brasil voltasse a ser Brasil, com
tudo de promessa e desperdício, aspiração e naufrágio
grandeza sonhada e miséria vivida que isso implica. Dúvidas
quanto ao futuro não faltam.
Uma coisa, porém, é certa.
Mais do que nunca, não faltarão pretextos para desrecalcar
frustrações atávicas da alma
brasileira neste Carnaval.
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