São Paulo, Quinta-feira, 11 de Fevereiro de 1999
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O carnaval da crise

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

O passado ilumina o presente. A ofegante epidemia do Carnaval se aproxima e eu me recordo de um fato histórico intrigante.
Primeira Guerra Mundial. Os combates seguem a rotina de extermínio e destruição. De repente, como por mágica, cessam as hostilidades. É Natal. As tropas abandonam as trincheiras e se confraternizam. Soldados inimigos chegam a trocar lembranças, moedas e fotos de família. Finda a trégua, todos voltam a seus postos. Prossegue a carnificina.
Imagine um historiador futuro nos olhando. O Brasil mergulhado em grave crise: o desemprego comendo solto, a besta fera da inflação à solta, o país perto do abismo. De repente, o que ocorre? A folia toma conta. Ninguém se lembra de câmbio, dengue ou FMI. A nação aflita e empobrecida põe a fantasia e cai no samba. "A alegria é a prova dos nove." Vem a quarta-feira, porém, e a animação esfria. Prossegue o tormento.
Eu me pergunto: onde o delírio, onde a lucidez? Na guerra cruenta no seio da civilização européia ou no lúdico interlúdio natalino? No pesadelo renovado de nosso descaso pela mais rasteira lógica econômica (baseado na crença de que enganaríamos o mundo com a mesma facilidade com que enganamos a nós mesmos) ou na alegria pré-lógica do corpo tropical?
A euforia coletiva com data marcada é um milagre da convivência brasileira. É bom lembrar, contudo, que, embora sejamos especialistas de notório talento e competência na coisa, a arte de cantar e dançar na adversidade não é privilégio nosso -é dom humano. Em página memorável dos seus "Ensaios", o iluminista cético escocês David Hume ilustra e elucida o processo:
"Informa-nos Trucídides que, durante a célebre praga de Atenas, quando a morte parecia estar diante de todos, um júbilo dissoluto e um ânimo jovial tomaram conta do povo, com as pessoas se exortando umas às outras a tirar o máximo proveito da vida enquanto ela durasse. A mesma observação faz Bocácio com respeito à praga em Florença... O prazer do momento é sempre importante; e o que quer que diminua a importância de todas as outras coisas irá conferir-lhe um valor e influência adicionais".
"Carpe diem". Se o amanhã ninguém sabe, por que não desfrutar a hora? "Troca por vinho o amor que não terás./O que esperas, perene o esperarás./O que bebes, tu bebes./Olha as rosas./Morto, que rosas é que cheirarás?", indaga o desenganado Fernando Pessoa. Tudo considerado, por que não viver cada dia como se fosse o último? Por que não descontar o futuro a taxas cavalares (como fazem, aliás, os nosso juros)? É o que pergunta (e responde) o genial Assis Valente no samba-choro "E o Mundo Não Se Acabou", gravado por Carmen Miranda para o Carnaval de 1938. Composto no clima pré-diluviano da época -ameaça de guerra, boatos sobre cometas, Estado Novo incipiente, previsões apocalípticas de todo tipo-, o samba se encaixa lindamente no modelo humano e cai como uma luva para o Carnaval deste ano:
"Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar/Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar... acreditei nessa conversa mole; Pensei que o mundo ia se acabar/E fui tratando de me despedir/E sem demora fui tratando de aproveitar/Beijei na boca de quem não devia/Peguei na mão de quem não conhecia/Dancei um samba em traje de maiô/E o tal mundo não se acabou... Ih! Vai ter barulho e vai ter confusão/ Porque o mundo não se acabou".
O mundo, ao que parece, custa a acabar; mas a química imprevisível da adversidade faz milagres. O que poucos sabem, creio, é que a origem do Carnaval brasileiro, tal como o conhecemos hoje em dia, é tributária de um fenômeno desse tipo.
A adversidade catalisadora, no caso, não foi uma daquelas tempestades devastadoras ou cataclismos econômicos que nos acometem regularmente desde que o samba é samba. Foi uma praga misteriosa importada da Europa ao final da Primeira Guerra -a gripe espanhola, que dizimou dezenas de milhares de brasileiros em poucos dias (os corpos ficavam empilhados nas sarjetas) e chegou a contaminar 80% da população carioca.
O vírus da gripe acabou vencido pelos anticorpos. Mas o Carnaval não ficou imune. Partiu do Rio, a cidade mais atingida pela peste, como aponta Ruy Castro, "a maior resposta que uma epidemia já conhecera -e uma resposta bem carioca: o Carnaval de 1919, o primeiro depois da gripe e o maior Carnaval do século, o Carnaval da ressurreição".
Foi precisamente aí que o samba, vale notar, desbancou os tangos, polcas, fados e valsas de outros carnavais, para se tornar, pela primeira vez, o senhor absoluto das avenidas, praças e salões. "Era como se o carioca", sugere Castro, movido pelo impulso de desrecalcar a dor e o trauma do corpo-a-corpo com a morte, "descobrisse finalmente a trilha sonora ideal para os corsos de carros abertos e para as batalhas de confete".
O Carnaval da crise aí está. Metade de mim delira, metade de mim pondera. O país assiste atônito ao formidável enterro de sua última quimera. A fantasia do real estável, longamente acalentada, ruiu. Como sempre, não há culpados: apenas injustiçados e incompreendidos. Pena que Stanley Fischer não tenha ficado para a folia.
Carnaval dos preços, Carnaval dos corpos. Um dia se corre ao banco, no outro se sacode na avenida. Há um quê de magia e terror -de deliciosamente ambíguo e tragicamente revelador- nessa justaposição entre a nossa encrenca financeira e a euforia carnavalesca que se anuncia. "O mundo inteiro espera, hoje é dia do riso chorar."
De certo modo, é como se o Brasil voltasse a ser Brasil, com tudo de promessa e desperdício, aspiração e naufrágio grandeza sonhada e miséria vivida que isso implica. Dúvidas quanto ao futuro não faltam. Uma coisa, porém, é certa. Mais do que nunca, não faltarão pretextos para desrecalcar frustrações atávicas da alma brasileira neste Carnaval.


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