São Paulo, Quinta-feira, 11 de Fevereiro de 1999
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CINEMA
"High Art", longa-metragem de estréia da diretora americana Lisa Cholodenko, supera o rótulo dos filmes sobre homossexualismo feminino
Lesbianismo faz sucesso nas salas de Paris

LÚCIA NAGIB
em Paris

A atual sensação nos cinemas de Paris se chama "High Art", longa-metragem de estréia de uma certa Lisa Cholodenko. O que possibilitou a essa americana, até aqui desconhecida, atravessar a barreira do cinema comercial, romper o lobby das distribuidoras e de repente estampar-se na capa de jornais e revistas?
A resposta mais óbvia seria o tema escolhido -o homossexualismo feminino. Mas só esse elemento não bastaria. Ao contrário da abundância e qualidade dos filmes gays masculinos, os raros femininos são frequentemente reivindicativos e maçantes, e quase nunca conseguem distribuição comercial.
"High Art" é, porém, um filme especial dentro de uma área especial. E, sendo obsessivamente homossexual, não é apenas um lindo filme sobre o lesbianismo, mas um lindo filme tout court.
Como as maçãs rosadas da jovem jornalista que o protagoniza, "High Art" esbanja frescor e entusiasmo típicos de iniciante.
Os diálogos por vezes toscos e os tropeços dos atores só aumentam essa vivacidade, que é, aliás, a qualidade principal de Syd, nome ambíguo da personagem central.
Syd quer ascender em seu novo emprego na revista de fotografia "Frame".
Vale-se, para tanto, de uma questionável sofisticação intelectual, que inclui citações disparatadas de Barthes e Kristeva.

Gota
É, no entanto, a própria vida que acaba por despertar sua sensibilidade artística. Como a maçã de Newton, uma gota d'água caída sobre seu livro, no banheiro, sugere-lhe a existência de um outro e atraente universo.
Com esse pingo d'água, fruto de um vazamento no apartamento do andar superior, introduz-se no filme uma sensualidade de qualidade rara e quase nunca vista em filmes gays femininos.
No apartamento de cima, Syd, até aqui heterossexual, descobre a misteriosa moradia de um casal de lésbicas: uma atriz alemã, outrora membro da trupe de Fassbinder, e uma fotógrafa judia americana, famosa no passado, mas hoje inativa.
É o encontro da juventude ambiciosa com a maturidade decadente, pois o casal de lésbicas há tempos abandonou a arte para se afundar nas drogas.
Cholodenko fotografa com fina arte os eflúvios envolventes desse ambiente vicioso e sujo, em que, ultimamente, "ninguém toma banho", como diz Lucy, a fotógrafa, surpresa com a possibilidade de um vazamento em seu banheiro.

Sublime
Aventurando-se sem medo nesse reino desconhecido, Syd se encanta com as velhas fotos penduradas na parede, compartilha dos paraísos artificiais da fotógrafa -a quem proporciona um súbito renascimento, convencendo-a a publicar em sua revista- e realiza finalmente a experiência do homossexualismo.
Eis o momento quase sublime do filme: Syd, ao ter seu corpo rechonchudo e adolescente tocado pelos dedos descarnados e envelhecidos de Lucy, derrama uma lágrima que faz eco à gota anterior, no banheiro, e completa a iniciação da jovem que nesse momento adquiriu um verdadeiro saber.
São metáforas delicadas que, longe do artifício, trazem o sabor do documento. Pouco importa se os editores da revista, com sua estreita visão comercial, são excessivamente caricatos, ou se o namorado de Syd não passa de uma mera sombra animada.
O amor entre duas mulheres finalmente ganhou uma expressão direta e convincente, e essa expressão atingiu as telas e o vasto público da capital intelectual do cinema. Parece o bastante.


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