São Paulo, sexta-feira, 11 de maio de 2001

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CINEMA/ESTRÉIA

"DEU A LOUCA NOS ASTROS"

Diretor conta como histórias curiosas sobre Hollywood nortearam sua recente produção

"Humor de van" inspira filme de Mamet

DAVID MAMET
DO "THE NEW YORK TIMES"

A história já batida sobre filmagens é a de uma equipe que filmava um carro no alto de uma montanha. Era a tomada da chamada "hora mágica", ou seja, o pôr-do-sol. A tomada já está pronta quando o gerente de externas diz: "Este lugar é legal, mas aquele lá, a cem metros de distância, é fantástico".
Todo mundo se desloca para o outro lugar, e lá, no promontório, se tem a vista mais maravilhosa. É tudo perfeito, excetuando um pinheiro que ocupa o quadro. Eles não pensam duas vezes: derrubam a árvore, colocam o carro, fazem a imagem e se dirigem ao aeroporto local.
Estão todos tomando um drinque enquanto esperam o avião. O barman fala: "Vocês estão com a cara contente". "Contente?", diz o diretor. "É claro que estamos contentes. Acabamos de filmar a vista mais linda que já vi na vida."
"Ah, sim", diz o barman, "vocês só podem ter estado no espinhaço do Pinheiro Solitário".
Histórias de cinema, coisas imperdíveis. Humor de van.
A maioria dos filmes é feita em externas, e filmar em externas significa passar centenas de horas dentro de vans. Acotovelamo-nos nas vans para sair à caça de locações, para voltar aos locais escolhidos com pessoas do departamento de arte, para voltar novamente com o diretor de fotografia, para voltar outras vezes com o pessoal de externas, dublês, efeitos especiais... Quatro horas por dia, cinco dias por semana, vezes dez semanas de pré-produção, dão 200 horas passadas numa van. A gente fala no celular, fofoca e troca histórias de cinema. Falar bobagem é uma estratégia eficaz para reduzir as tensões na van.
Evidentemente, as histórias mais valorizadas são as mórbidas: quem vomitou em cima da câmera, quem embarcou no avião errado e foi parar na Tailândia, quem se esqueceu de retirar o microfone grudado ao corpo e, com ele, foi até o trailer para fazer amor com uma pessoa não-autorizada (enquanto o cara do som difundia a trilha pelos alto-falantes do set).
Minha história predileta, esta semana, é sobre o casal que alugou sua casa para uma filmagem. "Vamos deixá-la melhor do que a encontramos", lhes disseram -frase que, por si só, já suscita gargalhadas dentro da van.
Os técnicos ergueram uma fachada falsa diante da casa e, no dia da filmagem, atearam fogo à fachada. Algo deu errado, e a casa inteira pegou fogo. Os donos da casa observavam tudo desde o gramado de um vizinho e, olhando para o efeito realista, aplaudiram. "Aplaudiram três vezes", contou a testemunha ocular.
Prato do dia na van: que suicídio não foi suicídio coisa nenhuma, que casamento não foi casamento? Quem manipulou os resultados do Oscar, quem envenenou a mulher, quem foi bonzinho demais com os animais?
Sente-se -e é isso que proporciona parte do prazer- que as histórias são sempre as mesmas, apenas os nomes mudam. Basta cortar os nomes que as leis de calúnia e difamação proíbem citar e substituí-los por Ramon Navarro, Wallace Reid, Roscoe Arbuckle, Mary Miles Minter, William Desmond Taylor, Marilyn Monroe.
Costuma se dizer, em Hollywood, que não é possível fazer um filme sobre Hollywood. Mas essa máxima é desmentida por "Sullivan's Travels", "What Price Hollywood?" (refilmado, é claro, como "Nasce uma Estrela"), "The Bad and the Beautiful" etc. Na realidade, poderíamos aplicar a máxima segundo a qual "em tempos de paz, devemos nos preparar para a guerra; em tempos de guerra..." e traduzir a idéia para "está na hora de fazer outro filme sobre Hollywood".
Minha tentativa nesse sentido é o filme "Deu a Louca nos Astros". Foi inspirado na história do espinhaço do Pinheiro Solitário. Desta vez a produtora do filme, faltando três dias de filmagens, perdeu a locação para suas externas (era uma cidadezinha da qual a equipe foi expulsa quando o astro do filme foi flagrado transando com uma menor de idade).
A produtora invade uma nova cidade e, naqueles três dias que faltam, faz o possível para "deixá-la melhor do que a encontrou". No momento, estou em fase de pré-produção de outro filme. Estou passando horas e horas na van, em Montreal e nas redondezas da cidade.
"Sim", dizemos, "dá pra filmar Montreal para ser qualquer lugar. Pode ser Boston -você pode ir até a esquina e filmar a cidade para que seja Paris no século 18...".
No fim do dia, os ocupantes da van especulam sobre como será a busca de externas num futuro distante 300 anos. "Plutão", elas dirão, por exemplo. "Cara, adoro Plutão. Dá pra filmar como se fosse Júpiter, dá para ser a Lua. Partes dele lembram os asteróides...".
É o humor de van.


David Mamet é diretor de cinema e dramaturgo

Tradução Clara Allain

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