São Paulo, Sexta-feira, 11 de Junho de 1999
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Glauber e Di - A história proibida


Era quase 7h quando Glauber Rocha se levantou da cama. A folhinha marcava 27 de outubro de 1976. Glauber ligou o rádio e, enquanto tomava café com sua mãe, Lúcia, ouviu a notícia: o pintor Di Cavalcanti havia morrido na noite anterior. Terminou o café, colocou uma camisa quadriculada, não fez a barba, deu um beijo em Lúcia e, ao sair de casa e pôr o pé na rua das Palmeiras, virou-se e disse: Tchau, mãe. Vou ver meu amigo Di. Não andou muito. Seu destino era a produtora Regina Filmes, ali mesmo, no Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Era para lá que ia quase diariamente nos últimos três meses, desde que voltara do exílio


Ficava batendo papo, assistindo copiões, palpitando em montagens e, principalmente, revendo os amigos. A produtora, aliás, pertencia a um deles: o cineasta paulista Nelson Pereira dos Santos.
E foi Nelson, na manhã daquela quarta-feira, quem atiçou o já inflamado Glauber.
-Tenho uns restos de filme aqui. E uma câmera.
Louco para filmar no Brasil depois de cinco anos no exterior, Glauber não parou para pensar. Invadiu as salas de moviola procurando quem o seguisse até o velório do pintor, que já acontecia no saguão do Museu de Arte Moderna (MAM) desde as 7h45.
Na primeira sala, encontrou Mario Carneiro, fotógrafo de clássicos cinemanovistas como "O Padre e a Moça" (66) e "Todas as Mulheres do Mundo" (67).
-Mario, vamos comigo filmar o Di?- disparou Glauber.
-Vou ficar montando até às 13h- respondeu.
Carneiro, que nunca havia trabalhado com Glauber, sabia que era uma boa oportunidade, talvez única. Mas ele também não era qualquer um, pensou. Afinal, naquele momento, o fotógrafo estava montando "Os Gordos e os Magros", seu primeiro longa-metragem como diretor. Não ia largar tudo por uma loucura do Glauber e, além disso, o aluguel do horário já estava pago.
-Pode ser até o meio-dia, Mario? Meio-dia ainda dá tempo. O Nelson vai emprestar a câmera e umas latas de filme.
-Tá bom-concordou Mario-Meio-dia.
Na segunda sala, deu de cara com o ator Joel Barcellos, que também montava seu primeiro longa como diretor, "Paraíso no Inferno". O magérrimo Barcellos, vestindo uma capa de chuva estilo Humphrey Bogart, aceitou na hora. Ficou tão empolgado que passou o resto da manhã declamando "Balada de Di Cavalcanti", poema de Vinicius de Moraes publicado por um jornal carioca naquele dia.
-Carioca Di Cavalcanti / É com a maior emoção / Que este também carioca / Te traz esta saudação- bradava Barcellos nos corredores da Regina.
Nelson convocou ainda dois de seus assistentes: o de fotografia, Nonato Estrela, e o de produção, Ricardo "Pudim" Moreira. Ao meio-dia, a turma se espremeu na Brasília de Ricardo Pudim, que acelerou em direção ao MAM. Glauber estava eufórico.

No velório
O primeiro obstáculo se revelou logo na entrada do museu. Um guarda encasquetou com a recém-formada equipe.
-Só pode entrar o pessoal da Globo- sentenciou o funcionário.
Glauber respondeu aos gritos:
-Este aqui é o cinema novo, meu amigo. O cinema novo que veio prestar uma homenagem ao grande Di Cavalcanti.
E foi entrando. Deu meia-volta e soltou:
-E o senhor fica cuidando do nosso carro.
O pequeno equipamento se resumia basicamente a uma câmera Arriflex 3C, de uns seis quilos, e quatro latas de filme de 120 metros ou quatro minutos cada. No total, 16 minutos de fita.
Não havia equipamento de iluminação, e a luz das janelas era insuficiente para filmar o velório.
Carneiro tirou o filtro, botou uma lente 28, levou a câmera ao ombro e apertou o botão. O que viu foi um velório vazio. Apesar de aberto, o povo do Rio de Janeiro não se animou a prestar sua última homenagem ao pintor naquele dia chuvoso. Às 14h, apenas 20 pessoas velavam o corpo.
Glauber tratou de agitar a cerimônia. Enquanto Carneiro fazia uns planos gerais, Glauber dava orientações.
-Agora dá um panorama geral. Enquadra o caixão no centro. Depois começa a filmar da esquerda para a direita- falava, sem se preocupar com o volume da voz.
Quando o marechal Cordeiro de Farias se dirigiu ao caixão, nova ordem de Glauber:
-Filma. Filma ele. Agora assim, ele vai saindo. Filma ele saindo. Filma tudo.
Carneiro explicou que não tinha conseguido captar bem a imagem de Farias junto ao caixão.
-Vai lá, Pudim. Vai lá fora e pede para ele voltar. Eu quero filmar isso.
Pudim foi, mas o marechal não voltou. Mandou um recado indignado: "Aquilo não foi cena. Não vou repetir".
Glauber deu de ombros e resolveu se concentrar no corpo de Di. O pintor tinha um lenço branco sobre o rosto e o caixão estava cheio de rosas.
Antes disso, teve que enfrentar uma amiga de Elizabeth Di Cavalcanti, filha adotiva do pintor:
-O senhor pare com esse espetáculo mórbido! Estou pedindo em nome da família Cavalcanti!
Glauber foi conversar com Elizabeth, explicou que era uma homenagem, que Di era seu amigo, que não pretendia ofender ninguém.
-Acredite em mim. Você acha que eu iria fazer uma coisa que não fosse bonita? Ele era um artista e isso é bonito. É uma coisa certa. Não estou fazendo isso para ninguém. É para mim, que gostava tanto dele.
Terminou seu discurso de joelhos e voltou ao trabalho. Chamou Carneiro e explicou que queria uma panorâmica em close de Di.
-Começa do pé. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Agora a mão. Um, dois, três...
Glauber contava alto para orientar o fotógrafo. A câmara ia subindo. Mas quando Carneiro focalizou o alto do caixão, sentiu um frio na espinha. Glauber havia retirado o lenço que cobria o rosto de Di.
-Agora dá um close na cara dele. Vamos lá. Um, dois, três, quatro cinco, seis, sete oito, nove, dez. Corta!
Às 15h15, o caixão foi fechado. Era a vez de Joel Barcellos entrar em cena.
-E aí, Glauber?- perguntou o ator.
-Pega a alça do caixão, Joel.
Barcellos obedeceu e levantou o caixão com a ajuda de amigos de Di. Glauber comandava o velório.
-Pára o caixão! Pára que eu quero a câmera do outro lado. Vai lá, Carneiro. Agora pode andar. Vai! Anda!
O caixão foi colocado no carro funerário e 13 carros se dirigiram ao cemitério São João Baptista. Vinte minutos depois, cerca de 50 pessoas acompanhavam o enterro.
Ali, a imagem preferida de Glauber foi Marina Montini, ex-musa e modelo de Di Cavalcanti para diversos quadros. Glauber mandou Barcellos grudar em Marina, e Carneiro acompanhou cada movimento da mulata. Em uma cena particularmente polêmica, Joel dá uma secada em Marina, enquanto o padre encomendava o corpo.
"Filmei tudo, com Mario Carneiro, Pudim, Nonato e ainda com pequena transa entre Joel Barcellos e Marina Montini", escreveu Glauber no dia seguinte, em carta enviada ao crítico João Carlos Rodrigues.
Dias depois, Glauber chamou o ator Antônio Pitanga e, com fotografia de Nonato Estrela, filmou cenas adicionais. Pediu para Pitanga, sem camisa e com uma calça de capoeira, dançar em frente a quadros de Di expostos em uma galeria de Ipanema.
Filmou também cenas em seu apartamento, nas quais aparece com amigos cineastas, como Cacá Diegues.
Por fim, pediu ajuda ao baiano Roberto Pires para montar o filme de forma inovadora, com longas cenas intercaladas por outras rapidíssimas -estilo que acabou recebendo de Glauber o apelido de "montagem atômica".
Mas, naquele dia, 27 de outubro de 1976, ninguém pensava nisso. Glauber estava satisfeito com o trabalho realizado, sua homenagem ao amigo Di Cavalcanti. Chamou a equipe, que jamais se reuniria outra vez, e foram todos a um restaurante português no bairro de Botafogo. Ali, nem bem se sentou, virou para Nonato Estrela e resumiu o dia:
-Meu Deus! Que loucura!
(IVAN FINOTTI e PAULO SANTOS LIMA)


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