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MÚSICA ERUDITA
Barenboim leva ao limite uma arte orquestral do piano
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Os discos não lhe fazem justiça. Ele é um pianista da cor
e do espaço e é um pianista da
imanência e da presença: nenhuma dessas qualidades sobrevive à
transformação do som em raio laser. Daniel Barenboim deu um
concerto espantoso na Sala São
Paulo anteontem. Foi um grande
momento da música e um acontecimento na vida de quem teve a
sorte de estar lá.
Um pianista deste porte se reconhece ao primeiro acorde. Antes:
no primeiro passo, palco adentro.
Barenboim tem a confiança de
quem já se levou ao limite da sua
arte e é capaz, agora, de usufruir
com tranqüilidade o que ela tem
para lhe dar. Na confluência de
2.600 olhos, sentou-se ao piano
calmo e concentrado; e concentrado e calmo irradiou música para 2.600 ouvidos.
Primeira parte: Itália. "Anos de
Peregrinação - 2º Ano", de Liszt
(1811-1886). É uma lição não só
musical perceber, agora, a mudança no entendimento dessas
peças. Até poucos anos, Liszt era
um compositor do "gosto médio", música de exibição.
Hoje é um dos nomes mais inspiradores do século 19, pioneiro
das modernidades, um gênio das
formas livres e da combinação de
materiais. Migrou para os extremos: música para quem não ouviu nada, ou quase tudo.
Mesmo quem já ouviu bastante
teria muito com o que se surpreender na interpretação de Barenboim. Um termo técnico, como "diminuendo", não dá a noção do que foi o "diminuendo" ao
final do "Soneto de Petrarca no
104". E "suspensão da nona"? Isso
é uma média ideal, um conceito, e
não tem como transmitir a qualidade de uma suspensão particular
da nona, a nota dissonante vibrando sozinha no teatro imenso,
até se resolver na tônica.
O tempo, ali, vai se modelando
noutra dimensão, num universo
paralelo, que a gente chama, por
simplicidade, de música. Esse domínio torna-se mais complexo
quando se tem muitas linhas.
Barenboim toca em múltiplos
planos. Está aqui e ali e lá ao mesmo tempo. Exemplo: uma melodia bem à frente, baixos nas profundezas e uma camada média,
também rica em nuances. Michelangeli fazia coisas assim. Barenboim faz de outro modo, amplo e
orquestral.
Segunda parte: Espanha. Os
dois primeiros cadernos de "Iberia", de Albéniz (1860-1909). Imagine uma música sofisticada e ao
mesmo tempo entregue ao que há
de mais concreto na experiência.
A terra, o sol, a luz; corpos e rostos; cantos e sons; até cheiros e
horas. Se o poeta Rilke fosse feliz e
músico, talvez tivesse escrito essa
"Iberia" (Rilke morou em Ronda,
inspiração para a "Rondeña").
Um detalhe: o "coro" de "Corpus Christi en Sevilla", desfilando
na procissão transcendental de
acordes. Outro: o bom humor dos
ritmos quebrados da "Triana".
Barenboim tocou Albéniz como
se fosse um Liszt da Espanha; e tocou Liszt como um Albéniz húngaro. Um e outro são criações ou
revelações do pianista.
Ovação, platéia em pé. Bis: Chopin. Bis: Villa-Lobos. Bis: Ginastera. Foi um grande momento da
vida e um acontecimento na música, que nem sempre anuncia esses milagres e revelações.
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