São Paulo, sexta-feira, 11 de agosto de 2000


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MÚSICA ERUDITA
Barenboim leva ao limite uma arte orquestral do piano

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os discos não lhe fazem justiça. Ele é um pianista da cor e do espaço e é um pianista da imanência e da presença: nenhuma dessas qualidades sobrevive à transformação do som em raio laser. Daniel Barenboim deu um concerto espantoso na Sala São Paulo anteontem. Foi um grande momento da música e um acontecimento na vida de quem teve a sorte de estar lá.
Um pianista deste porte se reconhece ao primeiro acorde. Antes: no primeiro passo, palco adentro. Barenboim tem a confiança de quem já se levou ao limite da sua arte e é capaz, agora, de usufruir com tranqüilidade o que ela tem para lhe dar. Na confluência de 2.600 olhos, sentou-se ao piano calmo e concentrado; e concentrado e calmo irradiou música para 2.600 ouvidos.
Primeira parte: Itália. "Anos de Peregrinação - 2º Ano", de Liszt (1811-1886). É uma lição não só musical perceber, agora, a mudança no entendimento dessas peças. Até poucos anos, Liszt era um compositor do "gosto médio", música de exibição.
Hoje é um dos nomes mais inspiradores do século 19, pioneiro das modernidades, um gênio das formas livres e da combinação de materiais. Migrou para os extremos: música para quem não ouviu nada, ou quase tudo.
Mesmo quem já ouviu bastante teria muito com o que se surpreender na interpretação de Barenboim. Um termo técnico, como "diminuendo", não dá a noção do que foi o "diminuendo" ao final do "Soneto de Petrarca no 104". E "suspensão da nona"? Isso é uma média ideal, um conceito, e não tem como transmitir a qualidade de uma suspensão particular da nona, a nota dissonante vibrando sozinha no teatro imenso, até se resolver na tônica.
O tempo, ali, vai se modelando noutra dimensão, num universo paralelo, que a gente chama, por simplicidade, de música. Esse domínio torna-se mais complexo quando se tem muitas linhas.
Barenboim toca em múltiplos planos. Está aqui e ali e lá ao mesmo tempo. Exemplo: uma melodia bem à frente, baixos nas profundezas e uma camada média, também rica em nuances. Michelangeli fazia coisas assim. Barenboim faz de outro modo, amplo e orquestral.
Segunda parte: Espanha. Os dois primeiros cadernos de "Iberia", de Albéniz (1860-1909). Imagine uma música sofisticada e ao mesmo tempo entregue ao que há de mais concreto na experiência.
A terra, o sol, a luz; corpos e rostos; cantos e sons; até cheiros e horas. Se o poeta Rilke fosse feliz e músico, talvez tivesse escrito essa "Iberia" (Rilke morou em Ronda, inspiração para a "Rondeña").
Um detalhe: o "coro" de "Corpus Christi en Sevilla", desfilando na procissão transcendental de acordes. Outro: o bom humor dos ritmos quebrados da "Triana". Barenboim tocou Albéniz como se fosse um Liszt da Espanha; e tocou Liszt como um Albéniz húngaro. Um e outro são criações ou revelações do pianista.
Ovação, platéia em pé. Bis: Chopin. Bis: Villa-Lobos. Bis: Ginastera. Foi um grande momento da vida e um acontecimento na música, que nem sempre anuncia esses milagres e revelações.


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