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CRÍTICA
Ruy Guerra faz pesadelo dos sonhos de Glauber
TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
S e, nos anos 60, Ruy Guerra
inscreveu-se entre os mais
modernos diretores do cinema
novo, isso se deve especialmente à
sua condição de estrangeiro.
Essa situação abrigava o cineasta das contingências políticas brasileiras, das intempéries que levavam os cinemanovistas a redimensionarem rumos de acordo
com os novos ventos e a se apegarem a um certo ranço de oportunismo político do qual nem Glauber Rocha escapou. Mais do que
isso, tal condição inspirava as perambulações do cinema de Guerra e filiava, afinal, "os cafajestes"
brasileiros aos errantes personagens da modernidade cinematográfica.
"Estorvo", seu mais recente filme, também se encontra nesse
descaminho. "Não estou entrando em lugar nenhum, mas saindo
de todos os outros", propala seu
protagonista. Guerra, mais do
que nunca, faz-se aqui um estrangeiro. A cena em que seu alter ego
(Jorge Perugorría) conversa,
quando criança, e em portunhol,
com sua irmã brasileira, talvez seja a que melhor ilustre a relação,
indizível e incestuosa, que Guerra
mantém com a cultura brasileira.
O portunhol é a língua de seu
continente luso-afro-brasileiro,
sua terra de ninguém. "Não são
brasileiros, são ruyguerreanos
aqui e acolá", dizia Glauber Rocha. Mas se os ruyguerreanos de
outrora ainda tinham a potência
nietzschiana e a macheza revolucionária e suicida dos heróis cinemanovistas que o próprio Guerra
encarnava quando se juntava à
patotinha da pesada formada por
Daniel Filho, Hugo Carvana e Jece
Valadão, os de hoje mais se assemelham a párias sociais.
São machos em fuga, acuados,
impotentes. O personagem de Perugorría não é senão a encarnação
da falência masculina, e o seu melhor amigo a do desencanto no
romance de Chico Buarque. Esse
amigo é um poeta que lhe ensina a
língua do "desesperanto".
O delírio utópico cede lugar à
catatonia paranóica. E será destituído de esperança que nosso herói embarcará numa dantesca jornada, deparando-se com um povo miserável e grotesco cuja deformidade não será nada mais do
que o reflexo de uma elite abjeta,
encastelada em seus vícios.
Natural que sua perambulação
resulte inútil, que sua viagem seja
imóvel e seus pontos de fuga se façam inalcançáveis. Ele estará
sempre voltando ao mesmo centro vazio que é o próprio cerne do
imobilismo que ronda a nós, latino-americanos. Filiado a tantos
outros personagens "suspensos
no nada" da tradição literária ocidental, o personagem de Buarque
faz Guerra recuperar, para o contexto da urbanidade contemporânea, aquela que era a característica central dos protagonistas dos
filmes modernos: a vidência.
A possibilidade de reagir à situação, a concepção do cinema
como arte revolucionária das
massas era, de certa forma (e muito justamente, devido ao contexto
brasileiro e terceiro-mundista),
um ranço que o cinema novo legara do cinema clássico. Mas a infatigável e torturada fabulação do
povo brasileiro que Glauber engendrara era um sonho, e "Estorvo" é o pesadelo de sua realidade.
"Vigilâmbulo" como os personagens modernos do pós-guerra,
o protagonista de "Estorvo" é incapaz de reagir frente ao intolerável da realidade que ele, tornado
vidente (pelo prisma do "olho
mágico" de Buarque), agora percebe.
Se Guerra é capaz de se apegar,
com extrema fidelidade, ao olhar
de Buarque, e por ele chegar mesmo a sacrificar o seu filme, é por
uma afinidade sem preço, por
uma opção, afinal, puramente autoral. Sim, o fracasso é a verdade
desse filme, de seu personagem e
de toda a geração que ele representa. Mas é preciso, mais do que
nunca, defender esse fracasso.
Não se trata aqui de predizer o
fracasso comercial do filme, mas
apenas de celebrar a coragem de
Guerra na realização dessa obra
que, se me perdoam o trocadilho,
permanecerá um estorvo para a
maioria dos críticos e realizadores
do cinema nacional que, em sua
capitulação mercadológica, continuam a negar o melhor da cinematografia brasileira (seu legado
moderno) em nome da estandardização globalizante (a conspiração dos clichês), consagrada pelos
grandes festivais internacionais
como o de Cannes.
Estorvo
Estorvo
Direção: Ruy Guerra
Produção: Brasil, 2000
Com: Jorge Perugorría, Bianca Byington
Quando: a partir de hoje no cine Belas
Artes e no Cine Arte Lilian Lemmertz
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