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"A HUMANIDADE"
Premiado em Cannes, filme de Bruno Dumont, exibido na Mostra de SP em 99, estréia hoje na cidade
"Antipolicial" vai atrás da origem da vida
FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REDAÇÃO
Da sinopse, poderia-se dizer
que "A Humanidade" (99) é um
policial. Começa com um homem
andando pesadamente numa
campina, se aproximando do
horror: o crime sexual que, a partir dali, terá de resolver -a violação e assassinato de uma menina.
Mas o filme do francês Bruno
Dumont que chega hoje a São
Paulo, após ter colhido palmas em
Cannes 99 e ter sido exibido pela
Mostra de SP no mesmo ano, contraria a concepção usual do gênero. Aqui, quase nada se move.
O homem é Pharaon De Winter,
policial da cidadezinha de Bailleul, norte da França -onde,
aliás, Dumont nasceu, em 1958, e
onde rodou seu primeiro longa,
"A Vida de Jesus" (97). Pharaon
tem, como vários tiras de Hollywood, um passado nebuloso a assombrá-lo. De resto, é distante de
seus congêneres americanos -e
das personagens e fatos comezinhos de sua rotina.
Os personagens (inclusive e
principalmente Pharaon) têm
reações, por vezes, mais próximas
da animalidade do que da humanidade. Os diálogos são poucos.
A violência que sobra após o
choque inicial é a da crueza que
Dumont adota, buscando o que
há de primitivo no humano, e que
levou a cortes e à retirada do filme
de cartaz na Itália -ao que o cineasta reagiu com alívio: "O cinema é uma arte do corte, mas antes, não depois".
Duas das cenas cortadas são
fundamentais. A primeira enfoca
a vagina da menina morta. A segunda, inspirada na tela "A Origem do Mundo" (1866), de Gustave Courbet, mostra a de Domino,
vizinha de Pharaon, por quem o
policial é apaixonado, mas que
namora um motorista de ônibus.
Para Dumont (filósofo de formação), o corpo é o início de tudo.
No fim, vemos que a história é
só um pretexto, como o diretor e
roteirista disse à Folha após a projeção de "A Humanidade" no 4º
Festival de Cinema Francês de
Acapulco, em 99. Leia a seguir os
principais trechos da entrevista.
Folha - Os personagens de "A Humanidade" são lacônicos; seus gestos são mais notáveis que as falas.
Isso faz parte de um estilo seu?
Bruno Dumont - Cada vez mais, a
realidade não me interessa. Não
tenho vontade de ver gente que
conversa normalmente. Eu acho
que a ausência de palavras é voltar
ao fundamental, que é o corpo,
que está no começo de tudo. Não
quer dizer que não acredite no
discurso. Mas penso que o cinema
vive um momento primordial, de
confronto com a questão: "Quem
somos nós?". E a única maneira
de compreender a realidade é indo à margem dela. Para isso, precisamos de ritmo, de mudança,
do outro. Pharaon é o outro, e nos
outros vemos a nós mesmos.
Folha - Esteticamente, porém, o
filme é extremamente real. Os atores têm cara de "gente normal", o
ambiente não é glamouroso...
Dumont - Sim, é muito comum...
Há uma aparência de realidade: as
ruas, as pessoas... Mas o irreal não
se filma: eu não posso filmar o divino ou o interior das pessoas. Eu
me sirvo do ordinário, do visível
para contar as coisas. A imagem
não é mais do que uma passagem
para ir além. E quem passa é o espectador: eu lhe dou uma imagem
inacabada a ser interpretada.
Folha - O sr. se fixa muitas vezes
sobre partes dos corpos, em especial mãos. É uma maneira de representar a aproximação do outro?
Dumont - Sim, com as mãos é
que se pega o outro. Mas Pharaon
cheira muito, ele não pega. Porque tocar já requer mais coragem.
Ele olha muito antes. E cheira.
Folha - Não é muito humano usar
o olfato dessa maneira.
Dumont - Não, é muito animal;
ao mesmo tempo, quando fazemos amor com alguém, a gente
cheira. Mas Pharaon o faz na rua,
em situações incomuns. Ele precisa sentir o corpo do outro.
Folha - O sr. ressalta algumas características humanas muito próximas da animalidade. Há também
muitas cenas de sexo, nuas e cruas.
É um filme muito físico, não?
Dumont - Muito. É um filme que
quer se consagrar a isso exclusivamente. Ao mesmo tempo, é metafísico. Além do que vemos, há outras coisas que acontecem, mas
que pertencem ao espectador.
Folha - Ao comparar a visão da
vagina da menina morta à de Domino, que relação buscava?
Dumont -Acho que a necessidade de amor é uma necessidade de
fusão. Ao mesmo tempo, a violação é como a fusão -pela morte.
Então esses dois planos se sustentam mutuamente. Enquanto a
primeira cena é o fim do mundo,
a coisa mais abjeta que se possa
ver -e que, no entanto, se deva
ver-, quando aponto a câmera
para a vagina de Domino, é sobretudo para mostrar que é por aquilo que ela chora: pelo seu sexo. E
quando procuramos o lugar da
câmera, buscamos o mais expressivo. A câmera lá é toda a possibilidade de humanidade, que penetra, é a sexualidade, é a vida... É
muito carregado de significado.
Folha - O sr. é um autor. Considera adaptar outros autores?
Dumont - Não. Acho que essa é
uma arte total. No momento não
imagino filmar uma adaptação.
Folha - Ao que parece, porém, a
história não é o primordial.
Dumont - Não. A história não é
tão importante, não deve ocupar
um espaço exagerado, mas permitir que os protagonistas se relacionem. Como a vida, ela é um
pretexto para as relações entre
uns e outros. Isso é a vida, e o cinema não fala de outra coisa. Fala
de quem se deseja, de quem se detesta, de quem se encontra, se deixa. A história, acho, é mínima.
Folha - O sr. tem uma visão pessimista da humanidade?
Dumont -Não, não é pessimista,
mas não se nota de imediato pelo
filme porque não é um cinema
imediatista. O importante é a impressão que vai deixar, mesmo se
vemos coisas que são difíceis, violentas, duras... Para mim, o cinema é um despertar. Eu vi filmes na
minha vida que me despertaram.
Não é porque vemos um filme feliz que ficamos felizes, nós somos
muito complicados. Precisamos
ver filmes que dêem vontade de
chorar, de amar; é isso a humanidade. Ir ao cinema por diversão,
simplesmente, não é verdadeiro.
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