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CRÍTICA
Filme trafega na contramão do cinema-adrenalina
SÉRGIO RIZZO
ESPECIAL PARA A FOLHA
E mbarcar na jornada proposta pelo diretor francês
Bruno Dumont em "A Humanidade" não é tarefa das mais fáceis.
São duas horas e meia que contrariam, na aparência, a tese do movimento no cinema narrativo.
Nada parece acontecer na vida
terrivelmente entediante dos moradores de Bailleul, pequena cidade operária na região norte da
França. É um ponto no mapa, pelo qual o mundo passa rápido, a
bordo do trem de alta velocidade
que liga o país à Inglaterra.
À margem da linha ferroviária,
ao alcance do olhar dos passageiros, Bailleul conhece seu lado
mais aterrorizante: uma garota de
11 anos é estuprada e morta na
volta da escola.
Quem encontra o corpo na relva
é o policial Pharaon (Emmanuel
Schotté), que passará a investigar
o caso em companhia do chefe
(Ghislain Ghesquère).
Acostumados à pasmaceira cotidiana, ambos são incapazes de
elucidar um crime bárbaro como
esse. Mas o quadro de Pharaon é
um pouco mais grave: ele parece
despreparado para a vida.
Dumont joga o entrecho detetivesco para segundo plano e nos
aproxima desse adulto que às vezes se comporta como uma criança ainda incapaz de compreender
as regras do jogo social.
Vive com a mãe, nutre uma
atração mal disfarçada pela vizinha (Séverine Caneele) e não se
importa de "segurar a vela" quando ela sai com o namorado, um
motorista de ônibus apalermado
(Philippe Tullier).
Mas há algo de nobre e incomum nessa figura apagada: ele
mora em uma rua que leva o seu
próprio nome, o mesmo do avô, o
pintor realista Pharaon De Winter (1849-1924) -cujas obras
aparecem no filme com autorização da família.
Uma delas, um auto-retrato, fica pendurado no quarto de Pharaon. É uma das peças do quebra-cabeça que, uma vez montado,
ajuda a compreender o seu comportamento. Sabemos que passou
por uma tragédia há alguns anos,
mas tudo leva a crer que já era assim antes disso.
Se uma condição do ser humano emocionalmente equilibrado é
sentir empatia pelos outros, ele é o
que de melhor a espécie poderia
produzir. Mas, na brutalidade cotidiana, essa qualidade é um fardo, mais ou menos como a maldição da mutante Vampira, que absorve a energia das pessoas que
toca em "X-Men - O Filme".
Vencedor do Grande Prêmio do
Júri e dos prêmios de melhor ator
(Schotté) e atriz (Caneele) no Festival de Cinema de Cannes do ano
passado, "A Humanidade" lembra sobretudo a ambientação de
"A Vida de Jesus" (1997), o longa
de estréia do cineasta.
Vai além dele, no entanto, sobretudo porque a pretensão aqui
é maior e, com ela, o risco de desagradar. Dumont prefere trafegar
na contramão do cinema-adrenalina. Quem se dispuser a baixar a
guarda e experimentar a diferença de rotação verá que o impacto
do filme não acaba quando ele
termina.
A Humanidade
L" Humanité
Direção: Bruno Dumont
Produção: França, 1999
Com: Emmanuel Schotté, Séverine
Caneele, Philippe Tullier, Ghislain
Ghesquière
Quando: a partir de hoje no cine Vitrine
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