São Paulo, sexta-feira, 11 de agosto de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
As diferenças fundamentais do ser humano

Leis, códigos , constituições de países civilizados, maiorias e minorias de diversas épocas garantem que todos os homens nascem iguais. Pode ser. Mas, além das muitas diferenças criadas pelo duro ofício de viver junto (os outros sendo o inferno), há divisões radicais que separam a humanidade naquilo que hoje os colunistas costumam chamar de "nicho".
Há raças que vivem e pensam de um modo, religiões que acreditam nisso ou naquilo e adotam um comportamento radicalmente contraditório. O exemplo mais notável é a dos judeus, que cobrem a cabeça com um solidéu durante os ofícios religiosos, e os cristãos, que descobrem a cabeça na mesma ocasião.
Há um axioma cultural -que Gore Vidal repetiu num filme de Fellini. A humanidade se divide em dois tipos de homem: os que amam e os que detestam Roma. Os marxistas de vários tamanhos, feitios e intenções costumam dividir a mesmíssima humanidade entre exploradores e explorados. Conheci um cara que fazia a mesma divisão radical entre os que sabiam o que era um hemistíquio e os que não sabiam que diabo era isso.
Em tempo: se não estou enganado, hemistíquio é um troço que os poetas usam para fazer determinados versos quando o acento tônico é indispensável para se obter a sonoridade de um decassílabo ou de um alexandrino. Se estou certo, faço parte de uma humanidade. Se estou errado, faço parte de outra.
Fidel Castro talvez seja o que mais se aproxima de uma divisão exata e necessária: os homens se dividem entre aqueles que jogam fora o anel dos charutos e aqueles que fumam o charuto com anel. Pode parecer complicado, mas acho que ele dividiu certo. Porque na divisão proposta, ele se esqueceu propositadamente daqueles que não fumam charuto, com ou sem anel. E sobretudo daqueles que, além de não fumar charuto, não fumam nada de maneira alguma -e deles parece que será o reino dos céus.
Como não pretendo o reino dos céus nem outro qualquer tipo de reino, fico entre os que fumam, e fumam charutos, e fumam charutos com anel. Quando vejo alguém fumando um puro sem anel, fico insultado.
Os entendidos garantem que o anel foi feito para manter o fumo da capa dos charutos bem enrolada, mas isso quando a indústria tabaqueira era incipiente. Hoje, com as bonitas folhas da Sumatra e com a melhor técnica dos enroladores, um bom charuto não precisa do anel para prender a folha da capa.
Evidente que os anéis fazem parte da tradição, são bonitos, alguns deles bonitíssimos. Neles, predominam duas cores heráldicas: o rubro e o ouro. Mas há anéis amarelos, brancos e marrons, como os Montecristos.
E, por falar em Montecristos, penso logo em outra divisão importante que poderia ser até mais importante do que as demais: os homens que acreditam na Justiça e os que nela não acreditam. O conde de Montecristo, que deu nome ao famoso charuto e que tinha outro nome (Edmundo Dantés), foi preso por equívoco, ficou anos numa enxovia sórdida. Apesar de personagem fictício, os roteiros turísticos aconselham uma visita à ilha em frente a Marselha, dita de Montecristo, onde ele teria mofado um tempão.
No momento, não me recordo se Montecristo acreditava ou não na Justiça. Acho que não, pois, quando conseguiu sair da prisão, dedicou-se à vingança, conhecida pelo óbvio nome de "A Vingança de Montecristo". Donde se conclui que ele procurou fazer justiça por conta própria, descrente da Justiça dos homens e da Justiça de Deus.
Quando há confusões por aí e o suspeito de algum crime declara que confia na Justiça -seja a dos homens, seja a de Deus-, eu fico preocupado. Se um dia eu cometer um crime, deverei confiar nela? O melhor que faço, o mais prudente, é não cometer crime nenhum, embora já tenha sido preso, segundo alguns, por motivos justos e, segundo outros, por motivos injustos -o que vem dar na mesma.
Donde se deve concluir que a Justiça, como os charutos, deve ser exercida com ou sem qualquer penduricalho, por mais bonito e necessário que seja. Um velho filme de André Cayate, que abandonou a advocacia para fazer cinema, termina com a condenação de um réu por oito anos. E ele diz no final: se o réu é culpado, a pena de oito anos é pouco. Se é inocente, a pena é muita. Mais uma vez, vem dar na mesma: nunca se sabe em que ou em quem acreditar.
E descubro, neste final de crônica, que me perdi na intenção e no modo de tentar dividir a humanidade. Não cheguei a nenhuma conclusão -e, para ser franco, não me preocupo com isso. O que me leva a sugerir uma divisão definitiva e inarredável da condição humana: os que sabem o que estão falando e os que não sabem.
Mas lembro agora outra divisão que poderia funcionar: os que acreditam que o juiz Nicolau está mesmo foragido e os que acreditam que ele só não foi preso porque sabe demais.


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