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CARLOS HEITOR CONY
As diferenças fundamentais do ser humano
Leis, códigos , constituições de países civilizados,
maiorias e minorias de diversas
épocas garantem que todos os homens nascem iguais. Pode ser.
Mas, além das muitas diferenças
criadas pelo duro ofício de viver
junto (os outros sendo o inferno),
há divisões radicais que separam
a humanidade naquilo que hoje
os colunistas costumam chamar
de "nicho".
Há raças que vivem e pensam
de um modo, religiões que acreditam nisso ou naquilo e adotam
um comportamento radicalmente contraditório. O exemplo mais
notável é a dos judeus, que cobrem a cabeça com um solidéu
durante os ofícios religiosos, e os
cristãos, que descobrem a cabeça
na mesma ocasião.
Há um axioma cultural -que
Gore Vidal repetiu num filme de
Fellini. A humanidade se divide
em dois tipos de homem: os que
amam e os que detestam Roma.
Os marxistas de vários tamanhos,
feitios e intenções costumam dividir a mesmíssima humanidade
entre exploradores e explorados.
Conheci um cara que fazia a mesma divisão radical entre os que
sabiam o que era um hemistíquio
e os que não sabiam que diabo
era isso.
Em tempo: se não estou enganado, hemistíquio é um troço que
os poetas usam para fazer determinados versos quando o acento
tônico é indispensável para se obter a sonoridade de um decassílabo ou de um alexandrino. Se estou certo, faço parte de uma humanidade. Se estou errado, faço
parte de outra.
Fidel Castro talvez seja o que
mais se aproxima de uma divisão
exata e necessária: os homens se
dividem entre aqueles que jogam
fora o anel dos charutos e aqueles
que fumam o charuto com anel.
Pode parecer complicado, mas
acho que ele dividiu certo. Porque
na divisão proposta, ele se esqueceu propositadamente daqueles
que não fumam charuto, com ou
sem anel. E sobretudo daqueles
que, além de não fumar charuto,
não fumam nada de maneira alguma -e deles parece que será o
reino dos céus.
Como não pretendo o reino dos
céus nem outro qualquer tipo de
reino, fico entre os que fumam, e
fumam charutos, e fumam charutos com anel. Quando vejo alguém fumando um puro sem
anel, fico insultado.
Os entendidos garantem que o
anel foi feito para manter o fumo
da capa dos charutos bem enrolada, mas isso quando a indústria
tabaqueira era incipiente. Hoje,
com as bonitas folhas da Sumatra
e com a melhor técnica dos enroladores, um bom charuto não
precisa do anel para prender a folha da capa.
Evidente que os anéis fazem
parte da tradição, são bonitos, alguns deles bonitíssimos. Neles,
predominam duas cores heráldicas: o rubro e o ouro. Mas há
anéis amarelos, brancos e marrons, como os Montecristos.
E, por falar em Montecristos,
penso logo em outra divisão importante que poderia ser até mais
importante do que as demais: os
homens que acreditam na Justiça
e os que nela não acreditam. O
conde de Montecristo, que deu
nome ao famoso charuto e que tinha outro nome (Edmundo Dantés), foi preso por equívoco, ficou
anos numa enxovia sórdida. Apesar de personagem fictício, os roteiros turísticos aconselham uma
visita à ilha em frente a Marselha,
dita de Montecristo, onde ele teria
mofado um tempão.
No momento, não me recordo
se Montecristo acreditava ou não
na Justiça. Acho que não, pois,
quando conseguiu sair da prisão,
dedicou-se à vingança, conhecida
pelo óbvio nome de "A Vingança
de Montecristo". Donde se conclui que ele procurou fazer justiça
por conta própria, descrente da
Justiça dos homens e da Justiça de
Deus.
Quando há confusões por aí e o
suspeito de algum crime declara
que confia na Justiça -seja a dos
homens, seja a de Deus-, eu fico
preocupado. Se um dia eu cometer um crime, deverei confiar nela? O melhor que faço, o mais prudente, é não cometer crime nenhum, embora já tenha sido preso, segundo alguns, por motivos
justos e, segundo outros, por motivos injustos -o que vem dar na
mesma.
Donde se deve concluir que a
Justiça, como os charutos, deve
ser exercida com ou sem qualquer
penduricalho, por mais bonito e
necessário que seja. Um velho filme de André Cayate, que abandonou a advocacia para fazer cinema, termina com a condenação de um réu por oito anos. E ele
diz no final: se o réu é culpado, a
pena de oito anos é pouco. Se é
inocente, a pena é muita. Mais
uma vez, vem dar na mesma:
nunca se sabe em que ou em
quem acreditar.
E descubro, neste final de crônica, que me perdi na intenção e no
modo de tentar dividir a humanidade. Não cheguei a nenhuma
conclusão -e, para ser franco,
não me preocupo com isso. O que
me leva a sugerir uma divisão definitiva e inarredável da condição
humana: os que sabem o que estão falando e os que não sabem.
Mas lembro agora outra divisão
que poderia funcionar: os que
acreditam que o juiz Nicolau está
mesmo foragido e os que acreditam que ele só não foi preso porque sabe demais.
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