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DRAUZIO VARELLA
A alergia do isolamento
Criança pobre pega
doença infecciosa, as ricas
sofrem de alergia.
Nos países industrializados, as
crianças e os adolescentes têm
mais asma e doenças alérgicas. O
aumento da frequência é proporcional à renda da família, à melhora das condições gerais de habitação e de saúde e à redução do
número de pessoas na família.
Crianças criadas com muitos irmãos e as que frequentam creches
adquirem infecções corriqueiras,
essenciais para o desenvolvimento harmonioso dos mecanismos
de imunidade. Na ausência delas,
instalam-se doenças alérgicas,
porque o sistema imunológico
desregulado agride os próprios tecidos do organismo. É o caso dos
brônquios na asma e da pele nos
eczemas, por exemplo.
Pesquisadores da Universidade
do Arizona publicaram na revista
"The New England Journal of
Medicine" um estudo no qual
acompanharam 1.035 crianças a
partir do nascimento e avaliaram
o aparecimento de asma no período dos 6 aos 13 anos de idade.
Os resultados mostraram que a
convivência com outras crianças
durante os seis primeiros meses
de vida de fato reduz a incidência
de asma no futuro.
A hipótese de que as alergias
das crianças mais ricas sejam devidas à falta de exposição aos germes do ambiente também foi testada por investigadores finlandeses. Os autores partiram da teoria
de que a variedade da flora comensal presente no intestino das
crianças poderia ativar mais adequadamente o sistema imunológico e proteger melhor contra
doenças alérgicas do que as infecções esporádicas da infância (geralmente de natureza respiratória).
Num estudo publicado na revista "Lancet", os autores acompanharam 132 crianças do nascimento aos dois anos de idade.
Durante a gravidez, as mães foram divididas em dois grupos:
metade recebeu placebo (produto
inerte) e a outra foi tratada por
via oral de duas a quatro semanas com culturas de lactobacilos,
germes componentes da flora intestinal não-patogênica. Era exigência do estudo que todas as
mulheres participantes tivessem
pelo menos um parente em primeiro grau que sofresse de alergia. Durante os primeiros seis meses de vida, as crianças receberam
o mesmo tratamento das mães
(placebo ou lactobacilos). O grupo tratado com os germes apresentou um número de casos de eczema 50% menor.
Se o sistema imunológico humano precisa mesmo ser estimulado por germes transmitidos aos
bebês para se desenvolver em plenitude e como as sociedades
afluentes cada vez isolam mais
seus filhos entre cortinas e carpetes abarrotados de alérgenos, devemos esperar um número crescente de pessoas de imunidade
mais frágil no futuro.
Isso nos tornará mais dependentes de desinfetantes e de antibióticos. Teremos de viver na limpeza obsessiva: qualquer contaminação poderá causar doença e
haverá necessidade de antibióticos para combatê-la.
Acontece que as bactérias não
são idiotas. Durante 3,5 bilhões
de anos, foram habitantes exclusivas do planeta. E predominam
até hoje: constituem mais da metade da biomassa terrestre -a
soma das massas de todos os seres
vivos, incluindo árvores, elefantes
e mosquitos.
Tanto sucesso evolucionista deve-se a uma estratégia simples: dividir-se freneticamente. No microscópio, é fácil ver: elas adquirem a forma de um oito, copiam o
material genético e mandam
uma cópia para cada parte do oito. Então a parte de cima se separa da de baixo e surgem duas bactérias-filhas, cópias xerox da mãe.
Como a divisão muitas vezes
acontece numa fração de minuto,
as bactérias aprenderam a fazer
cópias do próprio material genético em velocidade vertiginosa: são
máquinas de copiar DNA.
A pressa é inimiga da perfeição,
como é sabido. Por causa dela, as
bactérias-filhas nascem com diferenças sutis em relação à mãe,
produtos de erros pontuais da
maquinaria copiadora. Muitas
morrem por isso, outras levam
vantagem à custa deles. Os erros
de cópia provocam diversidade
entre as bactérias.
Para complicar e aumentar
mais a versatilidade genética, as
bactérias são mestras numa segunda arte: a de transmitir informação genética de uma para outra. Há 30 anos, quase todas as cepas de estafilococo respondiam à
penicilina. Hoje é necessário sorte
para encontrar uma que o faça.
Os estafilococos disseminaram os
genes da resistência à penicilina
entre eles.
A existência de cepas rebeldes
exige a criação de novos desinfetantes e de antibióticos mais poderosos. A velocidade com a qual
conseguimos gerar informação
científica para inventá-los, entretanto, é bem menor do que a das
bactérias em gerar diversidade
genética para resistir a eles. Enquanto a humilde penicilina reinou durante décadas, o antibiótico de hoje custa uma fortuna e fica obsoleto em pouco tempo.
Perderemos essa guerra?
Acho que não. Já sabemos muito e aprenderemos mais sobre as
bactérias, os fungos e os vírus.
Passaremos a usar desinfetantes e
agentes antimicrobianos com sabedoria, apenas nos casos em que
forem absolutamente necessários.
E, provavelmente, seremos capazes de realizar o antigo sonho da
medicina: fortalecer as defesas
contra as infecções e modular a
intensidade da resposta imunológica para que ela não se volte contra nós mesmos.
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