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NELSON ASCHER
Tartarugas, bolcheviques e o culto à juventude
Há celebridades cuja morte
surpreende não pelo inesperado, mas porque nos lembra que
a pessoa ainda estava viva. De
Roberto Marinho contava-se,
presumivelmente há muito tempo, que certa vez alguém quis lhe
dar um filhote de tartaruga e ele,
rejeitando o presente, dissera: "A
gente se afeiçoa a esses bichinhos
e então fica triste quando eles envelhecem e morrem". A história,
se não é verdadeira, é bem contada. Até o praticamente centenário presidente das Organizações
Globo teria, contudo, achado difícil competir com Tui Malila.
O nome acima pertencia a uma
tartaruga gigante de Madagáscar
(Astrochelys radiata) que o grande explorador inglês do oceano
Pacífico, o capitão James Cook
(1728-1779), dera durante sua terceira e última viagem, em 1777, à
família real de Tonga, na Polinésia ocidental. O quelônio em
questão morreu, quase bicentenário, em 1965. A carreira do testudíneo prova que, além da blindagem adequada, a chave para
uma vida longa e feliz é evitar o
estresse, pois, a não ser que haja
por aí um jabuti claustrofóbico,
que preferiria dispor de um "trailer" mais espaçoso, as tartarugas
em geral parecem felizes com sua
condição.
Surpreendente mesmo, porém,
deve ter sido a notícia da morte
de Alexander Kerensky, o político
russo nascido em 1881 que, chegando ao poder com a revolução
de fevereiro de 1917, foi deposto
pela subsequente, a de outubro.
Sua morte, ocorrida em 1970, em
Nova York, quando, de Lênin e
Trótski a Stálin, seus rivais já haviam envenenado incontáveis gerações de vermes, ilustra o fato
singelo de que o melhor lugar para um revolucionário russo se
aposentar (isto é, um que consiga
chegar à idade regulamentar)
ainda são os EUA.
Entre as exceções à regra recém-formulada, estão dois bolcheviques que, tendo driblado os piores
instintos dos patrões, colegas de
trabalho, subordinados, cônjuges,
filhos, parentes e amigos, chegaram, quem sabe, a imaginar que
a sinistra ceifeira havia se esquecido deles. Viátcheslav Mikhailóvitch Molotov, o signatário, com o
comerciante alemão de champanhe Joachim von Ribbentrop, do
pacto de 1939 que, principiando
pela invasão conjunta da Polônia, uniria seus chefes na conquista da Europa central, morreu
em 1986, aos 96 anos, enquanto
Lazar Moisêievitch Kagánovitch
esperou chegar aos 98 anos, para,
morrendo em 1991, sobreviver à
própria União Soviética. Ambos,
por assim dizer, expiraram na
terra natal e foram encontrar o
criador (não me refiro a Marx)
sem terem, durante a efêmera
passagem pela Terra, revelado
nada de relevante acerca do que
presenciaram ou perpetraram,
discrição essa que seguramente
contribuiu para uma velhice
tranquila.
O excepcional é que vidas tão
longas, se bem que ainda raras,
vêm-se tornando mais comuns ou
menos incomuns do que em qualquer outra era. A longevidade,
que, por alguma razão misteriosa, era apanágio de povos montanheses como os do Cáucaso ou os
dos Andes, beneficia ou (em termos pessimistas) amaldiçoa mais
e mais indivíduos, se bem que
desproporcionalmente do sexo feminino: apenas um em cada quatro ou cinco cidadãos centenários
é homem. (Eis como as más línguas explicam tal distorção: por
que os maridos morrem antes das
mulheres? Porque querem.) Em
todo caso, se houve nos últimos
séculos duas revoluções cujo impacto profundo sobre a existência
humana mal começou a ser avaliado, elas são a duplicação da expectativa de vida e o que merece
ser chamado de libertação da metade da espécie que se encontrava
numa posição servil, ou seja, a
concessão de direitos e a extensão
de condições (até o momento
quase) iguais às mulheres.
Que esses fenômenos se tenham
originado e ainda se circunscrevam ao Ocidente endossa, malgrado a reação histérica e hipócrita de seus vilipendiadores, aquilo
que Silvio Berlusconi falara dois
anos atrás, quando cometeu a
pior gafe de que um político é capaz: dizer a verdade. Segundo ele,
nossa civilização, a ocidental, supera, em suas realizações, as demais, em particular a islâmica. Se
o primeiro-ministro italiano soubesse húngaro, conheceria um ditado magiar: "Diga a verdade e
lhe quebrarão a cabeça".
Como não poderia deixar de
ser, mesmo progressos indiscutíveis geram problemas. Os governos europeus que o digam. Ao determinarem, concluída a Segunda Guerra, que os trabalhadores
se aposentariam com mais ou
menos 60 anos, os Estados contavam, auxiliados pelas contribuições de uma base demográfica
crescente, sustentá-las por cerca
de cinco invernos. Agora, limitados por uma taxa decrescente de
natalidade, não sabem como, por
um período três ou quatro vezes
mais longo que o previsto, pagarão seus pensionistas.
Há algo, porém, que a expectativa prolongada de vida ajuda a
explicar: trata-se, paradoxalmente, do culto à juventude. Quando
havia poucos idosos, era a eles
que a tribo ou a comunidade recorria para se informar sobre
acontecimentos do passado ou
aprender com sua experiência
acumulada. A trivialização do
envelhecimento deslocou a atenção de suas benesses para suas
desvantagens, e isso tanto graças
à nostalgia que a meia-idade sente pela adolescência quanto aos
efeitos deletérios da contracultura dos anos 60, que, com suas raízes no "bom selvagem" de Jean-Jacques Rousseau, contrapôs aos
compromissos pretensamente cínicos da vida adulta as virtudes
de uma pseudo-inocência juvenil.
Muitos dos que acham que a melhor época da vida vai dos 18 e
meio aos 19 anos de idade estão
hoje em dia condenados a amargar mais umas seis terríveis décadas.
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