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São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 2003

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NELSON ASCHER

Tartarugas, bolcheviques e o culto à juventude

Há celebridades cuja morte surpreende não pelo inesperado, mas porque nos lembra que a pessoa ainda estava viva. De Roberto Marinho contava-se, presumivelmente há muito tempo, que certa vez alguém quis lhe dar um filhote de tartaruga e ele, rejeitando o presente, dissera: "A gente se afeiçoa a esses bichinhos e então fica triste quando eles envelhecem e morrem". A história, se não é verdadeira, é bem contada. Até o praticamente centenário presidente das Organizações Globo teria, contudo, achado difícil competir com Tui Malila.
O nome acima pertencia a uma tartaruga gigante de Madagáscar (Astrochelys radiata) que o grande explorador inglês do oceano Pacífico, o capitão James Cook (1728-1779), dera durante sua terceira e última viagem, em 1777, à família real de Tonga, na Polinésia ocidental. O quelônio em questão morreu, quase bicentenário, em 1965. A carreira do testudíneo prova que, além da blindagem adequada, a chave para uma vida longa e feliz é evitar o estresse, pois, a não ser que haja por aí um jabuti claustrofóbico, que preferiria dispor de um "trailer" mais espaçoso, as tartarugas em geral parecem felizes com sua condição.
Surpreendente mesmo, porém, deve ter sido a notícia da morte de Alexander Kerensky, o político russo nascido em 1881 que, chegando ao poder com a revolução de fevereiro de 1917, foi deposto pela subsequente, a de outubro. Sua morte, ocorrida em 1970, em Nova York, quando, de Lênin e Trótski a Stálin, seus rivais já haviam envenenado incontáveis gerações de vermes, ilustra o fato singelo de que o melhor lugar para um revolucionário russo se aposentar (isto é, um que consiga chegar à idade regulamentar) ainda são os EUA.
Entre as exceções à regra recém-formulada, estão dois bolcheviques que, tendo driblado os piores instintos dos patrões, colegas de trabalho, subordinados, cônjuges, filhos, parentes e amigos, chegaram, quem sabe, a imaginar que a sinistra ceifeira havia se esquecido deles. Viátcheslav Mikhailóvitch Molotov, o signatário, com o comerciante alemão de champanhe Joachim von Ribbentrop, do pacto de 1939 que, principiando pela invasão conjunta da Polônia, uniria seus chefes na conquista da Europa central, morreu em 1986, aos 96 anos, enquanto Lazar Moisêievitch Kagánovitch esperou chegar aos 98 anos, para, morrendo em 1991, sobreviver à própria União Soviética. Ambos, por assim dizer, expiraram na terra natal e foram encontrar o criador (não me refiro a Marx) sem terem, durante a efêmera passagem pela Terra, revelado nada de relevante acerca do que presenciaram ou perpetraram, discrição essa que seguramente contribuiu para uma velhice tranquila.
O excepcional é que vidas tão longas, se bem que ainda raras, vêm-se tornando mais comuns ou menos incomuns do que em qualquer outra era. A longevidade, que, por alguma razão misteriosa, era apanágio de povos montanheses como os do Cáucaso ou os dos Andes, beneficia ou (em termos pessimistas) amaldiçoa mais e mais indivíduos, se bem que desproporcionalmente do sexo feminino: apenas um em cada quatro ou cinco cidadãos centenários é homem. (Eis como as más línguas explicam tal distorção: por que os maridos morrem antes das mulheres? Porque querem.) Em todo caso, se houve nos últimos séculos duas revoluções cujo impacto profundo sobre a existência humana mal começou a ser avaliado, elas são a duplicação da expectativa de vida e o que merece ser chamado de libertação da metade da espécie que se encontrava numa posição servil, ou seja, a concessão de direitos e a extensão de condições (até o momento quase) iguais às mulheres.
Que esses fenômenos se tenham originado e ainda se circunscrevam ao Ocidente endossa, malgrado a reação histérica e hipócrita de seus vilipendiadores, aquilo que Silvio Berlusconi falara dois anos atrás, quando cometeu a pior gafe de que um político é capaz: dizer a verdade. Segundo ele, nossa civilização, a ocidental, supera, em suas realizações, as demais, em particular a islâmica. Se o primeiro-ministro italiano soubesse húngaro, conheceria um ditado magiar: "Diga a verdade e lhe quebrarão a cabeça".
Como não poderia deixar de ser, mesmo progressos indiscutíveis geram problemas. Os governos europeus que o digam. Ao determinarem, concluída a Segunda Guerra, que os trabalhadores se aposentariam com mais ou menos 60 anos, os Estados contavam, auxiliados pelas contribuições de uma base demográfica crescente, sustentá-las por cerca de cinco invernos. Agora, limitados por uma taxa decrescente de natalidade, não sabem como, por um período três ou quatro vezes mais longo que o previsto, pagarão seus pensionistas.
Há algo, porém, que a expectativa prolongada de vida ajuda a explicar: trata-se, paradoxalmente, do culto à juventude. Quando havia poucos idosos, era a eles que a tribo ou a comunidade recorria para se informar sobre acontecimentos do passado ou aprender com sua experiência acumulada. A trivialização do envelhecimento deslocou a atenção de suas benesses para suas desvantagens, e isso tanto graças à nostalgia que a meia-idade sente pela adolescência quanto aos efeitos deletérios da contracultura dos anos 60, que, com suas raízes no "bom selvagem" de Jean-Jacques Rousseau, contrapôs aos compromissos pretensamente cínicos da vida adulta as virtudes de uma pseudo-inocência juvenil. Muitos dos que acham que a melhor época da vida vai dos 18 e meio aos 19 anos de idade estão hoje em dia condenados a amargar mais umas seis terríveis décadas.



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