São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 2005

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Zé Celso e Uzyna Uzona voltam a tanger o impossível

MARCOS DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

"Aqui não é multiplex, não!", avisa um dos atores do coro, pedindo à "turma do camarote" (o quarto e último andar do teatro-sambódromo concebido por Lina Bo Bardi) para ficar em pé e aplaudir a entrada do pelotão de soldados. A cena se deu no último dia da temporada de "A Luta 1" -primeiro episódio da última parte da epopéia musical "Os Sertões", adaptação de Zé Celso e do grupo Uzyna Uzona para a obra de Euclydes da Cunha.
Transformar o catatau que narra com grandiosidade a tragédia de Canudos já era tarefa improvável. Imagine encenar quase 20 horas de espetáculo. Faça as contas: "A Terra" (3h30min), "Homem 1" (4h30min), "Homem 2" (5h30min) e "A Luta 1" (6h). Pois, antes de partir para uma temporada em Berlim, onde vai "descabaçar o palco italiano" (palavras de Zé Celso) do lendário teatro Volksbühne -que já foi sede das companhias de Bertolt Brecht e de Heiner Müller-, o grupo encena seqüencialmente todas as partes de "Os Sertões", em dois ciclos de quatro dias, a partir de hoje, às 19h -quase todos, já que a "Luta 2" estréia só no ano que vem.
O banco é duro. O Teat(r)o Oficina -repare no "R" entre parênteses, explica muita coisa- não é lugar para espectador bunda-mole. Foi criado para a interação. O público/ator deve circular, trocar de lugares. Não há numeradas, é geral. Essa é a graça.
Vale destacar, no entanto, que a participação do público não é forçada pelos atores. Acontece de forma natural. E como acontece... No ano passado, no último dia de apresentação do grupo no festival de teatro Ruhrfestspiele, em Recklinghausen (na Alemanha), oito pessoas da platéia tiraram a roupa espontaneamente e entraram nus em cena. Todos alemães.
A maior interação acontece na chamada cena do "beija" (tire suas conclusões), no "Homem 2".
(Sim, já fui beijado no Oficina, por mulheres e homens. Não, nunca tirei -nem tiraram de mim- a roupa, ainda não passei pela experiência que Zé Celso costuma chamar de transmutação. Mas meu irmão já. Foi "estraçalhado" durante apresentação de "As Bacantes", em 1996. Diz ele que sua única inquietação no ato foi com um furo na cueca. Em que outro teatro do mundo é preciso se preocupar com o que vestir por baixo antes de sair de casa?)
Zé Celso, 68, segue incansável na arte de tocar o intocável. "É preciso tocar o tabu. Hoje o tabu do Brasil é a macroeconomia do Banco Central. Lá ninguém mexe, enquanto todos se divertem com a CPI do "Mensalão", o melhor "reality show" já realizado", afirma. Michael Jackson, "mensalão", narcotráfico, a vida real passa pelo teatro-ágora. Em que outro teatro um senador da República (Eduardo Suplicy) entra em cena para fazer discurso?
Há gente de todas as idades e classes sociais. As crianças do projeto artístico-social Bixigão, realizado heroicamente pelo grupo, entraram na peça em 2002 e fazem sua passagem para a adolescência na ribalta, com respeito e dignidade. Vindas de famílias pobres do bairro, transcenderam a opção de sobrevivência imposta pela engrenagem: estourar os carros em frente ao teatro para roubar toca-fitas. Foram alfabetizadas com Euclydes da Cunha.
O espírito da luta continua. Depois do início da negociação com o vizinho Silvio Santos, no ano passado, num encontro impensável dentro do Oficina, o contato foi perdido, e o shopping volta a ameaçar o sonho do teatro-estádio. "Preciso conversar com ele de novo. Ainda não estamos de acordo com o projeto", diz Zé Celso.
E o grupo corre contra o tempo atrás de passagens aéreas para cumprir a temporada alemã, num país de espectadores, que aguarda inerte pelos últimos (?) capítulos do "mensalão".


Os Sertões
Quando:
hoje e dia 18, às 19h ("A Terra"); amanhã e dia 19, às 19h ("O Homem 1"); dias 13 e 20, às 18h ("O Homem 2"); dias 14 e 21, às 18h ("A Luta 1")
Onde: Teat(r)o Oficina (r. Jaceguai, 520, Bixiga, SP, tel. 0/xx/11/3106-2818)
Quanto: R$ 15 ou R$ 40 (quatro peças)


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