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Zé Celso e Uzyna Uzona voltam a tanger o impossível
MARCOS DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
"Aqui não é multiplex, não!",
avisa um dos atores do coro, pedindo à "turma do camarote" (o
quarto e último andar do teatro-sambódromo concebido por Lina
Bo Bardi) para ficar em pé e
aplaudir a entrada do pelotão de
soldados. A cena se deu no último
dia da temporada de "A Luta 1"
-primeiro episódio da última
parte da epopéia musical "Os Sertões", adaptação de Zé Celso e do
grupo Uzyna Uzona para a obra
de Euclydes da Cunha.
Transformar o catatau que narra com grandiosidade a tragédia
de Canudos já era tarefa improvável. Imagine encenar quase 20 horas de espetáculo. Faça as contas:
"A Terra" (3h30min), "Homem
1" (4h30min), "Homem 2"
(5h30min) e "A Luta 1" (6h). Pois,
antes de partir para uma temporada em Berlim, onde vai "descabaçar o palco italiano" (palavras
de Zé Celso) do lendário teatro
Volksbühne -que já foi sede das
companhias de Bertolt Brecht e de
Heiner Müller-, o grupo encena
seqüencialmente todas as partes
de "Os Sertões", em dois ciclos de
quatro dias, a partir de hoje, às
19h -quase todos, já que a "Luta
2" estréia só no ano que vem.
O banco é duro. O Teat(r)o Oficina -repare no "R" entre parênteses, explica muita coisa- não é
lugar para espectador bunda-mole. Foi criado para a interação. O
público/ator deve circular, trocar
de lugares. Não há numeradas, é
geral. Essa é a graça.
Vale destacar, no entanto, que a
participação do público não é forçada pelos atores. Acontece de
forma natural. E como acontece...
No ano passado, no último dia de
apresentação do grupo no festival
de teatro Ruhrfestspiele, em Recklinghausen (na Alemanha), oito
pessoas da platéia tiraram a roupa
espontaneamente e entraram nus
em cena. Todos alemães.
A maior interação acontece na
chamada cena do "beija" (tire
suas conclusões), no "Homem 2".
(Sim, já fui beijado no Oficina,
por mulheres e homens. Não,
nunca tirei -nem tiraram de
mim- a roupa, ainda não passei
pela experiência que Zé Celso costuma chamar de transmutação.
Mas meu irmão já. Foi "estraçalhado" durante apresentação de
"As Bacantes", em 1996. Diz ele
que sua única inquietação no ato
foi com um furo na cueca. Em que
outro teatro do mundo é preciso
se preocupar com o que vestir por
baixo antes de sair de casa?)
Zé Celso, 68, segue incansável
na arte de tocar o intocável. "É
preciso tocar o tabu. Hoje o tabu
do Brasil é a macroeconomia do
Banco Central. Lá ninguém mexe,
enquanto todos se divertem com
a CPI do "Mensalão", o melhor
"reality show" já realizado", afirma. Michael Jackson, "mensalão", narcotráfico, a vida real passa pelo teatro-ágora. Em que outro teatro um senador da República (Eduardo Suplicy) entra em cena para fazer discurso?
Há gente de todas as idades e
classes sociais. As crianças do
projeto artístico-social Bixigão,
realizado heroicamente pelo grupo, entraram na peça em 2002 e
fazem sua passagem para a adolescência na ribalta, com respeito
e dignidade. Vindas de famílias
pobres do bairro, transcenderam
a opção de sobrevivência imposta
pela engrenagem: estourar os carros em frente ao teatro para roubar toca-fitas. Foram alfabetizadas com Euclydes da Cunha.
O espírito da luta continua. Depois do início da negociação com
o vizinho Silvio Santos, no ano
passado, num encontro impensável dentro do Oficina, o contato
foi perdido, e o shopping volta a
ameaçar o sonho do teatro-estádio. "Preciso conversar com ele de
novo. Ainda não estamos de acordo com o projeto", diz Zé Celso.
E o grupo corre contra o tempo
atrás de passagens aéreas para
cumprir a temporada alemã, num
país de espectadores, que aguarda
inerte pelos últimos (?) capítulos
do "mensalão".
Os Sertões
Quando: hoje e dia 18, às 19h
("A Terra"); amanhã e dia 19, às 19h
("O Homem 1"); dias 13 e 20, às 18h
("O Homem 2"); dias 14 e 21, às 18h
("A Luta 1")
Onde: Teat(r)o Oficina (r. Jaceguai, 520,
Bixiga, SP, tel. 0/xx/11/3106-2818)
Quanto: R$ 15 ou R$ 40 (quatro peças)
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