São Paulo, Sábado, 11 de Setembro de 1999
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CRÍTICA
Romance constrói o mundo como alucinação

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Em suas 130 páginas, o romance "As Iniciais", de Bernardo Carvalho, é inesgotável. Seria impossível resumir seu enredo. Mais correto seria falar em uma teia de enredos, atraindo o leitor para um labirinto de personagens esboçados e situações entrevistas.
A primeira das duas partes em que se divide o livro, intitulada "A.", organiza-se em torno de um jantar ao ar livre, junto a um antigo mosteiro restaurado, tudo indica que na ilha de Elba (assim como os personagens, os lugares também são designados apenas por iniciais).
No jantar, presidido pelo escritor M., aparentemente um doente de Aids próximo da morte, o narrador conhece uns personagens, reencontra outros e ouve histórias sobre outros mais.
O nexo entre essas pessoas e histórias nos é dado pelo ponto de vista meio alucinado e nada confiável do narrador, um jornalista brasileiro na Europa.
A segunda parte, "D.", passa-se anos depois, no Brasil. O mesmo narrador, desta vez num almoço ao ar livre, num palacete na serra (Petrópolis?), crê reconhecer entre os convidados um dos convivas do jantar em E., só que disfarçado sob outra identidade.
Várias das histórias narradas na primeira parte são revisitadas a partir de outros pontos de vista, e a própria identidade de alguns personagens é posta em dúvida.
Nesse jogo de luz e sombra, em que a narração parece solapar a todo momento suas próprias bases, o leitor não sente nunca sob os pés o solo seguro dos romances mais convencionais.
As histórias nos chegam filtradas por várias subjetividades. São quase sempre o relato que alguém contou a alguém que contou ao narrador -ele mesmo um sujeito instável e fragmentado.
Entre os personagens cujas histórias conhecemos por esse método indireto estão um milionário escocês, um mágico fracassado, um dançarino de butô, um pintor pedófilo e uma guerrilheira.

Fundo e figura
Mais até do que nos livros anteriores de Bernardo Carvalho, há aqui uma correspondência perfeita entre o sentido geral do romance, sua estrutura e cada uma de suas partes. Cada frase -em geral longos períodos, repletos de subordinações e apostos- é uma versão em ponto menor do conjunto da narrativa.
Do mesmo modo, os inúmeros destinos individuais narrados ou esboçados espelham, em sua constituição, os grandes temas mencionados aqui e ali: a crise do capitalismo, os impasses da arte.
O comentário aparentemente idiota de um comensal, uma anedota referida ao acaso, um banal ato falho: tudo pode vir a ser, a seu tempo, a chave para o entendimento de uma cena ou personagem, senão de toda a trama. Não será exagero chamar de diabólico esse método narrativo.


Avaliação:     

Livro: As Iniciais Autor: Bernardo Carvalho Lançamento: Companhia das Letras Quanto: Preço não definido (130 págs.)

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