São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
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A MORTE DO POETA

João Cabral despoetizou o poema

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Sobre João Cabral, é difícil fugir do que já se sabe. Palavras como "rigor" e "concisão" se tornam inevitáveis: a conhecida aversão do poeta ao sentimentalismo, a tudo que parecer confessional, frouxo e efusivo.
Inúmeros poemas de João Cabral -mas isto se sabe também- tratam da própria poesia, valendo como programa estético e tornando quase que supérfluo o trabalho crítico. Uma obra poética tão coerente, tão avessa ao mistério, tão consciente dos valores estéticos que persegue tende a deixar pouco espaço para quem pretenda analisá-la.
Já em seu primeiro livro, "Pedra do Sono" (1940-1941), João Cabral se mostrava distante dos "jardins enfurecidos,/ pensamentos palavras sortilégio/ sob uma lua contemplada", preferindo perguntar: "onde o mistério maior/ do sol da luz da saúde?". Em "O Engenheiro" (1942-45), há o elogio das "coisas claras:/ superfícies, tênis, um copo d'água".
A partir da década de 50, multiplicam-se os poemas sobre a poesia ou, mais especificamente, sobre um ideal de poesia anti-romântica e rigorosa. "Cantar num deserto/ devassado de sol (...) quando a sombra foge/ e não medra a magia" ("A Palo Seco"). Em "Graciliano Ramos", Cabral defende a literatura que, como a seca do Nordeste, "cresta o simplesmente folhagem,/ folha prolixa, folharada/ onde possa esconder-se a fraude".
De "Alguns Toureiros" a "Catar Feijão", de "O Sim Contra o Sim" a "O Ferrajeiro de Carmona", está presente em torno de qualquer assunto (o estilo de um matador, o trabalho no ferro forjado, o preparo da comida) a mesma exigência de precisão mineral, de contenção emotiva.
Rigor. Concisão. Não há dúvida, a poesia de João Cabral tem isso. Mas será que estamos empregando bem esses termos? Faço uma tentativa de qualificar melhor o que se passa em seus poemas.
Não só o verso, em geral curto, ou a pontuação, sempre minuciosa, mas também a sintaxe, muitas vezes elíptica, acentuam a idéia da concisão. Para lembrar o famoso "Tecendo a Manhã", há palavras que João Cabral omite, com grande efeito: "Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro (...)".
Do terceiro para o quarto verso, e do quinto para o sexto, uma palavra foi suprimida, creio que não para dar idéia de pressa, de movimento, mas sim por ascese, pela elegância do corte. O "tecer" da manhã, diga-se de passagem, conhece aqui um paradoxo, na frase que se interrompe.
Mas se "concisão" for sinônimo de brevidade, de poema curto, de iluminação súbita, de qualquer coisa parecida com o haicai ou epigrama, estamos muito longe disso quando lemos João Cabral.
Tome-se um poema como "O Relógio", no livro "Serial" (1959-1961). O que se vê é uma aproximação, um jogo de tentativas, uma constante autocorreção do próprio poema. Inicialmente, o relógio é comparado a "certas caixas de vidro,/ dentro das quais, como em jaula,/ se ouve palpitar um bicho".
Em seguida, a imagem da jaula é corrigida por outra: "se são jaulas não é certo;/ mais perto estão das gaiolas...". Há um pássaro que canta nessa gaiola/relógio: "é alada a palpitação/ a saltação que ela guarda". Mas o canto desse pássaro é diferente do canto de qualquer pássaro: desconhece "as variantes/ e o estilo numeroso/ dos pássaros que sabemos".
Logo adiante, a comparação cede lugar a outra: dentro da gaiola, se há pássaros, não são artistas, mas operários. Operários? Cabral se corrige novamente: o ruído do relógio, "tão igual sem fadiga,/ mal deve ser de operário". O poema continua tenteando por outras metáforas, e a esse procedimento, tão tipicamente cabralino, não sei se podemos associar a idéia de "concisão".
É justamente a proliferação de imagens, o infinito de associações possíveis, que move os poemas de João Cabral. O rigor, que obviamente existe, só se torna presente, só ganha "personalidade dramática", se podemos dizer assim, à medida que desfaz, corrige, retoma e retoca a metáfora inicial.
O grande jogo dos poemas de João Cabral, o que lhes dá maior interesse, densidade e beleza, está no fato de que todo o rigor, toda a ordem, tudo o que sua poesia tem de cerebral se funda não numa certeza matemática, mas numa hesitação, num verdadeiro "embarras de richesse" -tal coisa pode ser comparada a outra, mas também a uma terceira, e talvez melhor se a uma quarta... Como os galos de "Tecendo a Manhã", cada objeto se associa a um outro.
Nessa associação, o que surge é uma imensa liberdade poética, uma capacidade de surpresa, um grau de capricho e fantasia que nem sempre identificamos com a obra de João Cabral. Mas é que se trata de uma liberdade justificada, de um capricho associativo que se mede, se julga e se critica. Cada poema de Cabral encenaria, talvez, aquela "ordem civil sonhada" de sua "Fábula de Anfíon". Autor da melhor poesia social brasileira, com "Morte e Vida Severina", João Cabral "despoetizou o poema", mas isso não significa que devamos "tecnocratizá-lo" em nome da ordem e do rigor.




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