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A MORTE DO POETA
João Cabral despoetizou o poema
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Sobre João Cabral, é difícil fugir
do que já se sabe. Palavras como
"rigor" e "concisão" se tornam
inevitáveis: a conhecida aversão
do poeta ao sentimentalismo, a
tudo que parecer confessional,
frouxo e efusivo.
Inúmeros poemas de João Cabral -mas isto se sabe também- tratam da própria poesia,
valendo como programa estético
e tornando quase que supérfluo o
trabalho crítico. Uma obra poética tão coerente, tão avessa ao mistério, tão consciente dos valores
estéticos que persegue tende a
deixar pouco espaço para quem
pretenda analisá-la.
Já em seu primeiro livro, "Pedra
do Sono" (1940-1941), João Cabral
se mostrava distante dos "jardins
enfurecidos,/ pensamentos palavras sortilégio/ sob uma lua contemplada", preferindo perguntar:
"onde o mistério maior/ do sol da
luz da saúde?". Em "O Engenheiro" (1942-45), há o elogio das
"coisas claras:/ superfícies, tênis,
um copo d'água".
A partir da década de 50, multiplicam-se os poemas sobre a poesia ou, mais especificamente, sobre um ideal de poesia anti-romântica e rigorosa. "Cantar num
deserto/ devassado de sol (...)
quando a sombra foge/ e não medra a magia" ("A Palo Seco"). Em
"Graciliano Ramos", Cabral defende a literatura que, como a seca do Nordeste, "cresta o simplesmente folhagem,/ folha prolixa,
folharada/ onde possa esconder-se a fraude".
De "Alguns Toureiros" a "Catar
Feijão", de "O Sim Contra o Sim"
a "O Ferrajeiro de Carmona", está
presente em torno de qualquer
assunto (o estilo de um matador,
o trabalho no ferro forjado, o preparo da comida) a mesma exigência de precisão mineral, de contenção emotiva.
Rigor. Concisão. Não há dúvida,
a poesia de João Cabral tem isso.
Mas será que estamos empregando bem esses termos? Faço uma
tentativa de qualificar melhor o
que se passa em seus poemas.
Não só o verso, em geral curto,
ou a pontuação, sempre minuciosa, mas também a sintaxe, muitas
vezes elíptica, acentuam a idéia da
concisão. Para lembrar o famoso
"Tecendo a Manhã", há palavras
que João Cabral omite, com grande efeito: "Um galo sozinho não
tece uma manhã:/ ele precisará
sempre de outros galos./ De um
que apanhe esse grito que ele/ e o
lance a outro; de um outro galo/
que apanhe o grito que um galo
antes/ e o lance a outro (...)".
Do terceiro para o quarto verso,
e do quinto para o sexto, uma palavra foi suprimida, creio que não
para dar idéia de pressa, de movimento, mas sim por ascese, pela
elegância do corte. O "tecer" da
manhã, diga-se de passagem, conhece aqui um paradoxo, na frase
que se interrompe.
Mas se "concisão" for sinônimo
de brevidade, de poema curto, de
iluminação súbita, de qualquer
coisa parecida com o haicai ou
epigrama, estamos muito longe
disso quando lemos João Cabral.
Tome-se um poema como "O
Relógio", no livro "Serial" (1959-1961). O que se vê é uma aproximação, um jogo de tentativas,
uma constante autocorreção do
próprio poema. Inicialmente, o
relógio é comparado a "certas caixas de vidro,/ dentro das quais,
como em jaula,/ se ouve palpitar
um bicho".
Em seguida, a imagem da jaula é
corrigida por outra: "se são jaulas
não é certo;/ mais perto estão das
gaiolas...". Há um pássaro que
canta nessa gaiola/relógio: "é alada a palpitação/ a saltação que ela
guarda". Mas o canto desse pássaro é diferente do canto de qualquer pássaro: desconhece "as variantes/ e o estilo numeroso/ dos
pássaros que sabemos".
Logo adiante, a comparação cede lugar a outra: dentro da gaiola,
se há pássaros, não são artistas,
mas operários. Operários? Cabral
se corrige novamente: o ruído do
relógio, "tão igual sem fadiga,/
mal deve ser de operário". O poema continua tenteando por outras metáforas, e a esse procedimento, tão tipicamente cabralino,
não sei se podemos associar a
idéia de "concisão".
É justamente a proliferação de
imagens, o infinito de associações
possíveis, que move os poemas de
João Cabral. O rigor, que obviamente existe, só se torna presente,
só ganha "personalidade dramática", se podemos dizer assim, à
medida que desfaz, corrige, retoma e retoca a metáfora inicial.
O grande jogo dos poemas de
João Cabral, o que lhes dá maior
interesse, densidade e beleza, está
no fato de que todo o rigor, toda a
ordem, tudo o que sua poesia tem
de cerebral se funda não numa
certeza matemática, mas numa
hesitação, num verdadeiro "embarras de richesse" -tal coisa pode ser comparada a outra, mas
também a uma terceira, e talvez
melhor se a uma quarta... Como
os galos de "Tecendo a Manhã",
cada objeto se associa a um outro.
Nessa associação, o que surge é
uma imensa liberdade poética,
uma capacidade de surpresa, um
grau de capricho e fantasia que
nem sempre identificamos com a
obra de João Cabral. Mas é que se
trata de uma liberdade justificada,
de um capricho associativo que se
mede, se julga e se critica. Cada
poema de Cabral encenaria, talvez, aquela "ordem civil sonhada"
de sua "Fábula de Anfíon". Autor
da melhor poesia social brasileira,
com "Morte e Vida Severina",
João Cabral "despoetizou o poema", mas isso não significa que
devamos "tecnocratizá-lo" em
nome da ordem e do rigor.
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