São Paulo, quinta-feira, 11 de outubro de 2001

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GASTRONOMIA

A comida aproxima os homens

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Saiu pela editora Cosac & Naify o livro "Joseph Beuys", com um ensaio introdutório muito bom de Alain Borer. Não caberia na coluna comentar o livro e o artista, uma das mais importantes e fascinantes figuras do mundo da arte de pós-guerra, mas fiquei curiosa ao ver nas livrarias um outro livro, "Joseph Beuys - The Art of Cooking". Este tem tudo a ver com o nosso assunto e não deixa de dar pistas sobre a vida e a obra do artista alemão.
Joseph Beuys acreditava na capacidade criativa do homem, capacidade que se realiza na colaboração, entendimento e solidariedade entre pessoas de raças, origens, disciplinas e religiões diferentes. O artista trabalhou todas as suas energias para criar uma arte social que desse crédito às nossas potencialidades visuais, olfativas, de audição, manuais, emocionais, mentais e linguísticas. Usava os materiais invisíveis como a palavra, o gesto, a discussão, o comportamento para compor suas obras. Para suas esculturas formais, por outro lado, Beuys combinava materiais visíveis, como banha, feltro, cobre, mel, animais, plantas, elementos que transmitem energia e calor.
Para ele, arte e vida eram a mesma coisa e, analisando os ingredientes (!) usados pelo mestre alemão, vê-se que experimentou antes e mais do que qualquer pessoa gordura, margarina, chá, limão, sangue de lebre, mel, leite, vinagre, bolos, lombo de porco, açúcar, sementes, grãos, temperos, chocolate, arenque, Coca-Cola, água mineral e inumeráveis utensílios caseiros.
Além de artista, Beuys era um homem que gostava de cozinhar para si e para os amigos. No seu estúdio em Dusseldorf, no meio de uma homérica bagunça de livros e papéis, ficava um fogão daqueles esmaltados de branco e, no quintalzinho poluído da cidade grande, plantava uma horta de temperos.
Tinha uma casa de campo em Veert, perto de Dusseldorf, onde ia com a família. Seu prato forte era um bacalhau que punha de molho numa bacia velha em água corrente ou, de preferência, na chuva, quando então o peixe ficava com sabor mais natural e delicado. Na hora de fazer, tirava o peixe da água, secava com um pano e o batia todo com uma vassourinha de alecrim para que o gosto penetrasse na carne macia.
Depois juntava os temperos que conseguia, mais alho, que amava, muita cebola inteira e pimenta vermelha. Cobria com água e vinho branco e deixava cozinhando em fogo baixo. Era o bacalhau à moda de Veert.
Cozinhar para ele era um ritual, um encantamento de gestos casuais, misturas criativas, combinações do acaso e ingredientes básicos. A comida, quase sempre rústica, de sabores naturais, recendendo a tradições camponesas e um pouco de mágica e comunicação secreta, denunciados pelos gestos lentos e comedidos.
Gostava da arte de fazer uma comida, prestava atenção nas transformações químicas e físicas cheias de uma própria lógica interna.
Em Abruzzo, onde moravam amigos, visitava os camponeses e comia com eles a comida típica da terra. Toalha xadrez, pratos de terracota, muita bruschetta de entrada e um peru tradicional com lentilhas e pé de porco. Pão fresco saído do forno, tagliatelle com molho de linguiça apimentada. Paradiso na terra.
Foi passar um Natal nas Ilhas Seychelles, tropicais, a paisagem intocada, sabores afrodisíacos, a natureza luxuriante gerando energias.
Provava de tudo, numa curiosidade insaciável, no meio do cravo, de baunilha, dos campos de citronela, pimenteiras e as frutas tropicais, todos aqueles cheiros misturados que criavam uma gastronomia do inconsciente.
Os ingredientes principais eram peixe e arroz e as pastas temperadas, os gostos de alho, canela, cardamomo, curry, noz-moscada. China, Índia e França num só prato criolo. Tudo simples, o peixe grelhado com os chutneys picantes, o palmito, as enormes ostras com limão, os brotos de samambaia, a mandioca, a batata-doce e a fruta-pão, que era oferecida aos visitantes como comida da sorte para que voltassem sãos e salvos às suas terras de origem.
Beuys tinha um carinho especial, adivinhem, pela jaca, que o encantava. O cheiro forte, o tamanho, a estrutura... ah, a jaca.
Mas acreditava que todos os cheiros e sabores dessas ilhas eram essencialmente o gosto de manga, que se desdobrava em outros cheiros e sabores.
Não era feito só de simplicidade básica o nosso artista. Podia estender uma mesa com toalha adamascada, assar um presunto com purê de maçãs e blueberries.
Queria dizer, com isso, que o gosto não é somente um dos nossos cinco sentidos, mas também uma inclinação pessoal, uma sugestão de nosso organismo, que decide preferências de acordo com as circunstâncias. Através de nossos sentidos, experimentamos um processo contínuo de troca com o mundo que nos rodeia. Através do pensamento, fixamos as sensações que recebemos e as moldamos em conteúdo, em idéias e ideais.
A gastronomia transforma a comida em bens morais e físicos (ou danos). Além disso, usa as percepções sensoriais que tocam as faculdades da alma racional. A comida aproxima os homens, o que Beuys queria na arte e na vida.

E-mail: ninahort@uol.com.br



JOSEPH BEUYS - THE ART OF COOKING. Autora: Lucrezia de Domizio Durini. Editora Charta. R$ 125,33 (200 págs.). Onde encontrar: www.livcultura.com.br


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