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GASTRONOMIA
A comida aproxima os homens
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Saiu pela editora Cosac &
Naify o livro "Joseph Beuys",
com um ensaio introdutório muito bom de Alain Borer. Não caberia na coluna comentar o livro e o
artista, uma das mais importantes
e fascinantes figuras do mundo da
arte de pós-guerra, mas fiquei curiosa ao ver nas livrarias um outro
livro, "Joseph Beuys - The Art of
Cooking". Este tem tudo a ver
com o nosso assunto e não deixa
de dar pistas sobre a vida e a obra
do artista alemão.
Joseph Beuys acreditava na capacidade criativa do homem, capacidade que se realiza na colaboração, entendimento e solidariedade entre pessoas de raças, origens, disciplinas e religiões diferentes. O artista trabalhou todas
as suas energias para criar uma
arte social que desse crédito às
nossas potencialidades visuais, olfativas, de audição, manuais,
emocionais, mentais e linguísticas. Usava os materiais invisíveis
como a palavra, o gesto, a discussão, o comportamento para compor suas obras. Para suas esculturas formais, por outro lado, Beuys
combinava materiais visíveis, como banha, feltro, cobre, mel, animais, plantas, elementos que
transmitem energia e calor.
Para ele, arte e vida eram a mesma coisa e, analisando os ingredientes (!) usados pelo mestre alemão, vê-se que experimentou antes e mais do que qualquer pessoa
gordura, margarina, chá, limão,
sangue de lebre, mel, leite, vinagre, bolos, lombo de porco, açúcar, sementes, grãos, temperos,
chocolate, arenque, Coca-Cola,
água mineral e inumeráveis utensílios caseiros.
Além de artista, Beuys era um
homem que gostava de cozinhar
para si e para os amigos. No seu
estúdio em Dusseldorf, no meio
de uma homérica bagunça de livros e papéis, ficava um fogão daqueles esmaltados de branco e, no
quintalzinho poluído da cidade
grande, plantava uma horta de
temperos.
Tinha uma casa de campo em
Veert, perto de Dusseldorf, onde
ia com a família. Seu prato forte
era um bacalhau que punha de
molho numa bacia velha em água
corrente ou, de preferência, na
chuva, quando então o peixe ficava com sabor mais natural e delicado. Na hora de fazer, tirava o
peixe da água, secava com um pano e o batia todo com uma vassourinha de alecrim para que o
gosto penetrasse na carne macia.
Depois juntava os temperos que
conseguia, mais alho, que amava,
muita cebola inteira e pimenta
vermelha. Cobria com água e vinho branco e deixava cozinhando
em fogo baixo. Era o bacalhau à
moda de Veert.
Cozinhar para ele era um ritual,
um encantamento de gestos casuais, misturas criativas, combinações do acaso e ingredientes
básicos. A comida, quase sempre
rústica, de sabores naturais, recendendo a tradições camponesas e um pouco de mágica e comunicação secreta, denunciados
pelos gestos lentos e comedidos.
Gostava da arte de fazer uma comida, prestava atenção nas transformações químicas e físicas
cheias de uma própria lógica interna.
Em Abruzzo, onde moravam
amigos, visitava os camponeses e
comia com eles a comida típica da
terra. Toalha xadrez, pratos de
terracota, muita bruschetta de entrada e um peru tradicional com
lentilhas e pé de porco. Pão fresco
saído do forno, tagliatelle com
molho de linguiça apimentada.
Paradiso na terra.
Foi passar um Natal nas Ilhas
Seychelles, tropicais, a paisagem
intocada, sabores afrodisíacos, a
natureza luxuriante gerando
energias.
Provava de tudo, numa curiosidade insaciável, no meio do cravo,
de baunilha, dos campos de citronela, pimenteiras e as frutas tropicais, todos aqueles cheiros misturados que criavam uma gastronomia do inconsciente.
Os ingredientes principais eram
peixe e arroz e as pastas temperadas, os gostos de alho, canela, cardamomo, curry, noz-moscada.
China, Índia e França num só prato criolo. Tudo simples, o peixe
grelhado com os chutneys picantes, o palmito, as enormes ostras
com limão, os brotos de samambaia, a mandioca, a batata-doce e
a fruta-pão, que era oferecida aos
visitantes como comida da sorte
para que voltassem sãos e salvos
às suas terras de origem.
Beuys tinha um carinho especial, adivinhem, pela jaca, que o
encantava. O cheiro forte, o tamanho, a estrutura... ah, a jaca.
Mas acreditava que todos os
cheiros e sabores dessas ilhas
eram essencialmente o gosto de
manga, que se desdobrava em outros cheiros e sabores.
Não era feito só de simplicidade
básica o nosso artista. Podia estender uma mesa com toalha adamascada, assar um presunto com
purê de maçãs e blueberries.
Queria dizer, com isso, que o
gosto não é somente um dos nossos cinco sentidos, mas também
uma inclinação pessoal, uma sugestão de nosso organismo, que
decide preferências de acordo
com as circunstâncias. Através de
nossos sentidos, experimentamos
um processo contínuo de troca
com o mundo que nos rodeia.
Através do pensamento, fixamos
as sensações que recebemos e as
moldamos em conteúdo, em
idéias e ideais.
A gastronomia transforma a comida em bens morais e físicos (ou
danos). Além disso, usa as percepções sensoriais que tocam as
faculdades da alma racional. A comida aproxima os homens, o que
Beuys queria na arte e na vida.
E-mail: ninahort@uol.com.br
JOSEPH BEUYS - THE ART OF
COOKING. Autora: Lucrezia de Domizio
Durini. Editora Charta. R$ 125,33 (200
págs.). Onde encontrar: www.livcultura.com.br
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