São Paulo, quinta-feira, 11 de novembro de 2004

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MÚSICA

Programa de 73, CDs e shows de outras cantoras trazem reflexão sobre modos femininos de fazer cultura no Brasil

DVD de Elis evoca MPB que saiu de moda

Divulgação
A cantora Elis Regina aos 28 anos, durante a gravação do programa "MPB Especial", da TV Cultura


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Três modos distintos de fazer música brasileira no feminino estão em evidência nesta semana.
O modo 1 é o de Elis Regina (1945-82), aquela que foi embora cedo demais, roubando da história a possibilidade de contar com sua decadência artística. Pela primeira vez, Elis chega agora ao comércio em imagem & som, na edição em DVD de edição de 1973 do programa de entrevista & canções "MPB Especial", que Fernando Faro comanda até hoje (sob o nome "Ensaio") na TV Cultura.
O modo 2 é o de Doris Monteiro, 70, que atravessou com braveza modas & modinhas até se deixar engolir pela modernização restritiva da MPB dos anos 70. Ainda em atividade em seu canto modesto & discreto, Doris recebe a reedição de 12 de seus álbuns mais importantes, editados originalmente entre 1961 e 1978.
O modo 3 é o de Gal Costa, 59, que rejeitou as opções de Elis & Doris e percorre duro caminho de permanência & evidência, cheio de altos & baixos. Gal reestréia hoje em São Paulo show que combina o cancioneiro brasileiro antigo & os clássicos tropicalistas de Gal. Enquanto isso, festeja o contrato para gravar já dois CDs pela mesma Trama que lança o DVD de Elis, sob direção de um filho de Elis (João Marcello Bôscoli) e produção musical de um ex-marido de Elis (Cesar Camargo Mariano).
Ao modo 1.
Bôscoli inaugura, por intermédio de sua mãe, uma primeira série de dez DVDs extraídos de um dos mais importantes programas musicais da história da TV brasileira. O acordo foi estabelecido entre a TV Cultura, a empresa TeleImage (que recupera as imagens dos programas antigos de Fernando Faro) e a Trama (responsável pelo resgate da banda sonora e pela edição e comercialização).
Nos planos de Bôscoli para a primeira leva, estão especiais de nomes como Tom Jobim, Paulinho da Viola, Vinicius de Moraes & Toquinho, Adoniran Barbosa, Velha Guarda da Portela, Djavan e Alaíde Costa -mas tudo depende de uma complicada mecânica de autorização dos artistas envolvidos ou de seus herdeiros.
Faro, ciente do padrão de exigência da família de Elis Regina, faz coro e (auto)critica o que está lançando. "Eu, pelo menos, sinto falta de um contexto no DVD, de explicações sobre o que era o "Clube do Guri", o Beco das Garrafas", diz, exemplificando com algumas das referências presentes na fala de Elis na entrevista de 73.
A fala de Elis, aliás, é espetáculo à parte -que se completa pelos closes de suas mãos extremamente nervosas, de seu semblante que varia abruptamente entre o mais largo sorriso e a mais profunda melancolia, da voz embargada quando a cantora conta abertamente de seus desencontros, desavenças & amores com Edu Lobo, Chico Buarque, Cyro Monteiro, Agostinho dos Santos etc.
É um modo que saiu de moda, talvez desde a morte da modista. Elis, tida por admiradores & opositores como brava, explosiva, às vezes adjetivos até mais cruéis, mostra uma sinceridade em carne viva, sobre si, sua família, a MPB, a indústria fonográfica.
"Ela não tinha travas na língua, o que costuma causar problemas. Não posso dizer que pagou muito ou pouco por isso, mas pagou um preço, claro. Era honesta, transparente", avalia Faro, que à época da gravação dava hospedagem a Elis -segundo ele, ela andava "fugindo" do ex-marido Ronaldo Bôscoli, pai de João Marcello.
O Bôscoli filho concorda: "Elis não tem vaselina, não tem papas na língua, não tem personagem, é ela mesma e ponto".
"Hoje em dia isso não é mais pauta, há artista que só usa a inteligência para se cobrir. Para Elis havia um porquê, ela estava lutando por uma série de coisas, era o estado de espírito de uma época", afirma, estendendo a crítica à atualidade à mídia e à imprensa, que para ele também não sabem fazer perguntas.
Como João sabe -e a própria Elis menciona na entrevista-, sua mãe era muito combatida em 73 e respondia com agressividade. O filho arrisca explicar: "O que era, em 73, ser mulher num país machista, chauvinista, num meio em que só havia homem? Falam que "era brava", mas quem tem medo de uma mulher de 1,50 m? Era um passo para ser chamada de arrogante, temperamental".
Ops, alguma semelhança com o Brasil de 2004, das desavenças & desventuras de Marta Suplicy? "Vejo uma semelhança profunda e uma diferença profunda. Ao contrário de Marta, Elis não fazia concessão, não se aliava a gente que nem quero mencionar o nome. Mas, sim, é fácil fazer caricatura de uma mulher num mundo de homens machistas, que são muito dados ao assédio moral", avalia João, sondando se ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.
A propósito, o DVD "Elis Regina - MPB Especial - 1973" sai com 40 mil cópias pré-vendidas, mais 60 mil fabricadas em estoque ambicioso. É o passado dando as cartas no baralhão da nova indústria musical brasileira.

ELIS REGINA - MPB ESPECIAL - 1973. DVD com Elis Regina. Lançamento: Trama. Quanto: R$ 47,90 (preço sugerido pela gravadora).


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