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ARTIGO
George Harrison era um homem de alma grande, repleto de amor
RAVI SHANKAR
DO "THE NEW YORK TIMES", NA CALIFÓRNIA
Sinto que George trapaceou
comigo. Por que ele teve que
partir tão cedo, quando ainda era
tão jovem, sendo que eu queria ir
embora primeiro?
Em momentos como este, é
muito difícil exprimir o sentimento de vazio e tristeza que tenho por dentro. Como um filme
que passa rapidamente por meus
olhos, revejo tudo desde que o conheci, mais de 30 anos atrás. Seu
jeito, que lembrava o de uma
criança, seu sorriso tímido, mas
malandro, sua paixão pela música
e sua busca religiosa séria, especialmente pela velha tradição védica hindu, sempre me atraíram e
surpreenderam.
A qualidade prática, pé no chão,
de George era algo com que eu
podia me identificar com alegria.
Ele gargalhava abertamente
quando eu lhe contava minhas
piadas. Sempre competíamos para ver quem era capaz de fazer
mais e melhores trocadilhos.
As únicas aulas reais de cítara
que ele teve comigo foram no verão e outono de 1966, que ele não
pôde levar adiante tanto quanto
nós dois queríamos. Ele era muito
talentoso e teria se tornado um
grande citarista se pudesse ter dedicado tempo a isso.
Seu conhecimento e amor pela
música indiana foram se desenvolvendo imensamente ao longo
dos anos. Ele tinha uma sede
enorme do conhecimento e da sabedoria das tradições indianas.
Sob muitos aspectos, era mais indiano do que muitos indianos.
Embora eu já me apresentasse
em todo o mundo desde 1954, minha amizade com George, em
meados dos anos 1960, atraiu toda
uma nova geração para a cítara e
para mim. Embora eu não tivesse
feito nenhum disco com ele nem
com outro astro pop ou do rock,
passei a ser tratado como superastro por ser o guru do Beatle George. Depois disso, vieram Monterey, Woodstock e, finalmente, o
grande concerto para Bangladesh,
do qual George cuidou de tudo,
fazendo a produção. Por causa de
George, tivemos Bob Dylan, Eric
Clapton, Leon Russell e outros
músicos eminentes.
Depois de um ano, mais ou menos, quando George passou algum tempo comigo em minha casa, em Varanasi, ele sugeriu que
fizéssemos dois discos e, possivelmente, uma turnê pelos EUA.
Gravamos o primeiro nos estúdios A&M, para seu selo Dark
Horse. Foi então que ele conheceu
a querida Olivia, com quem se casou em 1978.
No verão daquele ano, foi gravado o segundo disco ("Festival of
India"), no estúdio de George.
Nunca me esquecerei dos dois
meses em que trabalhamos no álbum. Fiz todas as composições no
M4 enquanto viajava de Londres
para a casa do George, em Henley.
A gravação foi concluída com
edição simultânea, que o George
estava fazendo, sempre pedindo
que eu a ouvisse depois que ele
próprio estava satisfeito. Após esse período de enorme prazer criativo, partimos em turnê pelos
EUA e fizemos mais de 30 apresentações.
O que me comovia muito era
sua preocupação com minha saúde e meu bem-estar. Ele sempre
me dizia para eu não viajar e me
cansar tanto. Mais tarde, ele passou do papel de discípulo e amigo
para ser quase um filho para mim,
especialmente depois da morte de
meu próprio filho Subho, em
1992. Ele tomava um avião para ficar comigo sempre que eu estava
no hospital ou que passava mal
com meus problemas cardíacos.
Seu carinho e sua preocupação
me tocavam profundamente.
A última bela experiência musical que tive com ele foi com o CD
"Chants of India". Fizemos algumas das canções em Madras e a
maior parte no estúdio de George,
em Henley. Sua proximidade e
atenção na produção do disco
sempre me inspiravam. Mesmo
as composições complexas saíam
de mim espontaneamente.
Minha filha Anoushka e minha
mulher, Sukanya, também eram
muito ligadas a George. Ele tinha
em Olivia uma mulher linda e
amorosa e, em Dhani, um filho
maravilhoso. Tinha um coração
magnânimo e sempre era tão
cheio de atenção. Era uma alma
destemida e bela, sempre consciente de Deus. Eu o amava muito, muito. Embora ele tenha partido fisicamente, sempre estará vivo e forte em meu coração.
Ravi Shankar, 81, é citarista e foi parceiro musical do ex-beatle George Harrison
(morto no último dia 29)
Tradução Clara Allain
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