São Paulo, terça-feira, 11 de dezembro de 2001

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ARTIGO

George Harrison era um homem de alma grande, repleto de amor

RAVI SHANKAR
DO "THE NEW YORK TIMES", NA CALIFÓRNIA

Sinto que George trapaceou comigo. Por que ele teve que partir tão cedo, quando ainda era tão jovem, sendo que eu queria ir embora primeiro?
Em momentos como este, é muito difícil exprimir o sentimento de vazio e tristeza que tenho por dentro. Como um filme que passa rapidamente por meus olhos, revejo tudo desde que o conheci, mais de 30 anos atrás. Seu jeito, que lembrava o de uma criança, seu sorriso tímido, mas malandro, sua paixão pela música e sua busca religiosa séria, especialmente pela velha tradição védica hindu, sempre me atraíram e surpreenderam.
A qualidade prática, pé no chão, de George era algo com que eu podia me identificar com alegria. Ele gargalhava abertamente quando eu lhe contava minhas piadas. Sempre competíamos para ver quem era capaz de fazer mais e melhores trocadilhos.
As únicas aulas reais de cítara que ele teve comigo foram no verão e outono de 1966, que ele não pôde levar adiante tanto quanto nós dois queríamos. Ele era muito talentoso e teria se tornado um grande citarista se pudesse ter dedicado tempo a isso.
Seu conhecimento e amor pela música indiana foram se desenvolvendo imensamente ao longo dos anos. Ele tinha uma sede enorme do conhecimento e da sabedoria das tradições indianas. Sob muitos aspectos, era mais indiano do que muitos indianos.
Embora eu já me apresentasse em todo o mundo desde 1954, minha amizade com George, em meados dos anos 1960, atraiu toda uma nova geração para a cítara e para mim. Embora eu não tivesse feito nenhum disco com ele nem com outro astro pop ou do rock, passei a ser tratado como superastro por ser o guru do Beatle George. Depois disso, vieram Monterey, Woodstock e, finalmente, o grande concerto para Bangladesh, do qual George cuidou de tudo, fazendo a produção. Por causa de George, tivemos Bob Dylan, Eric Clapton, Leon Russell e outros músicos eminentes.
Depois de um ano, mais ou menos, quando George passou algum tempo comigo em minha casa, em Varanasi, ele sugeriu que fizéssemos dois discos e, possivelmente, uma turnê pelos EUA. Gravamos o primeiro nos estúdios A&M, para seu selo Dark Horse. Foi então que ele conheceu a querida Olivia, com quem se casou em 1978.
No verão daquele ano, foi gravado o segundo disco ("Festival of India"), no estúdio de George. Nunca me esquecerei dos dois meses em que trabalhamos no álbum. Fiz todas as composições no M4 enquanto viajava de Londres para a casa do George, em Henley.
A gravação foi concluída com edição simultânea, que o George estava fazendo, sempre pedindo que eu a ouvisse depois que ele próprio estava satisfeito. Após esse período de enorme prazer criativo, partimos em turnê pelos EUA e fizemos mais de 30 apresentações.
O que me comovia muito era sua preocupação com minha saúde e meu bem-estar. Ele sempre me dizia para eu não viajar e me cansar tanto. Mais tarde, ele passou do papel de discípulo e amigo para ser quase um filho para mim, especialmente depois da morte de meu próprio filho Subho, em 1992. Ele tomava um avião para ficar comigo sempre que eu estava no hospital ou que passava mal com meus problemas cardíacos. Seu carinho e sua preocupação me tocavam profundamente.
A última bela experiência musical que tive com ele foi com o CD "Chants of India". Fizemos algumas das canções em Madras e a maior parte no estúdio de George, em Henley. Sua proximidade e atenção na produção do disco sempre me inspiravam. Mesmo as composições complexas saíam de mim espontaneamente.
Minha filha Anoushka e minha mulher, Sukanya, também eram muito ligadas a George. Ele tinha em Olivia uma mulher linda e amorosa e, em Dhani, um filho maravilhoso. Tinha um coração magnânimo e sempre era tão cheio de atenção. Era uma alma destemida e bela, sempre consciente de Deus. Eu o amava muito, muito. Embora ele tenha partido fisicamente, sempre estará vivo e forte em meu coração.


Ravi Shankar, 81, é citarista e foi parceiro musical do ex-beatle George Harrison (morto no último dia 29)

Tradução Clara Allain



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