São Paulo, segunda, 12 de janeiro de 1998.




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Levamos para os ares nossos erros aqui na terra

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha Há uns dez anos, quase não se viam helicópteros. Mesmo na lagoa Rodrigo de Freitas era possível caminhar ou correr sem sentir aquele vento quente na nuca. Agora, tudo mudou. É preciso parar a bicicleta, segurar o chapéu e engolir um pouco de poeira. Turistas e executivos não param de decolar e aterrissar, enquanto aqui embaixo tudo voa com eles.
Na medida em que o trânsito vai ficando mais complicado, o problema da velocidade está sendo resolvido pelo alto e por cima das camadas sociais condenadas ao ônibus, ao metrô ou mesmo ao carro particular.
Do meu quartinho na baía da Jacuacanga, em Angra dos Reis, eu os vejo passar nos feriados. Penso em Ulysses Guimarães e Severo Gomes e suas mulheres, que desapareceram nessas águas. Nunca me esquecerei porque era repórter e fui chamado para reconhecer o corpo de Severo, de quem sempre gostei muito.
O último desastre aconteceu algumas horas depois da minha partida. Se estivesse lá, sentado na velha cadeira de praia da varanda, talvez tivesse presenciado a queda, o que deve ser uma das coisas mais terríveis para se presenciar naquela linda paisagem.
Quem sai de barco, sabe que tempestades sempre caem por ali. No verão, os helicópteros se deslocam para onde há beleza e paz. O problema é que a beleza e paz de Angra repousam num clima instável, sujeito a trovoadas. O mar não está para helicópteros.
Tenho um amigo que é piloto particular de um bambambã. Sua missão é voar em qualquer tempestade. Seu patrão não se contenta em ter uma capacidade de se deslocar mais velozmente, quer um instrumento que o coloque acima das próprias condições atmosféricas.
Se os pilotos não criarem um código próprio, no qual sejam capazes de dar a última palavra a partir de sua capacidade técnica e experiência de vôo, o helicóptero, espécie em expansão, pode virar espécie em extinção no Brasil.
Foi assim que li aquele pequeno escândalo com grã-finos que viajavam para Angra. Insatisfeito com o piloto, um dos passageiros simplesmente "pisou no freio". Na verdade, pisou violentamente num pedal que lhe parecia o freio, naturalmente a partir de seu universo de automobilista.
Ele se sentia num táxi. Pensou que pisando no freio, o veículo estacionaria e poderiam então resolver sua divergência. Infelizmente, é um erro comum. Muita gente tentou entender a revolução alemã com a lógica da russa, outros pretendem falar um idioma estrangeiro com as regras do seu próprio idioma.
Numa entrevista para a TV, o passageiro disse: o piloto é apenas um motorista do ar, logo, tem de acatar minha opinião. Senti aí, ainda estava em Angra, vendo helicópteros cruzando a baía, um certo medo desse encontro das classes dominantes brasileiras com um veículo ainda recente no seu cotidiano.
Elas tendem a ser autoritárias, o que aumenta a insegurança no ar. O piloto detém um volume de informações sobre seu veículo muito maior do que o passageiro, o que não acontece com o carro, em que os saberes de passageiro e motorista, às vezes, se equivalem.
Além disso, elas são pouco educadas como consumidoras e não fazem as exigências necessárias quando contratam um vôo. Desconhecem os critérios de licenciamento, não se interessam em checar os documentos. Montam no aparelho e ordenam: "Toca pelo litoral, passando por aquelas montanhas".
Sonho com a possibilidade de também oferecer outras alternativas aos que querem se deslocar mais rápido do que os respeitadores da lei da gravidade. O dirigível é uma delas. Uma cidade como o Rio de Janeiro poderia explorar dirigíveis, mais do que helicópteros, para mostrar suas belezas aos turistas.
Enquanto essa discussão não se inaugura, não posso me contentar em segurar o chapéu e parar minha bicicleta para que decolem ou aterrissem. O helicóptero chegou na frente do debate sobre seu uso. Por que não utilizar o desastre fatal e o quiproquó com os grã-finos para nos aprofundarmos no tema, fixarmos algumas regras elementares que sejam bastante conhecidas?
Não há chance de fazer isso no Congresso. A pauta está fechada para o período, e comissões não trabalham nesta época. Resta a mídia convencional e a Internet -essa última, mais restritiva, mas em compensação mais dinâmica e democrática.
O fato de os helicópteros terem mergulhado no mar reduziu a dimensão da tragédia. No entanto, sua presença é cada vez mais forte no próprio espaço urbano. Como eles não caem para cima, não vale o argumento de que se trata de um problema de minoria, isto é, apenas dos que têm poder aquisitivo para ter ou alugar um helicóptero.
Cada vez que me enredo no seu vento forte, ondulando as águas da Lagoa, tenho uma preocupação redobrada com a segurança. Ninguém gostaria de vê-los caindo, ainda mais em cima da própria bicicleta, da moça que vende cocos ou das crianças de velocípede.
O helicóptero pode ser um grande avanço na vida das pessoas. Com o tempo, talvez os preços caiam e de certa forma o uso se amplie. Mas é impossível introduzir uma nova técnica de transporte no Brasil sem uma reflexão permanente sobre ela.
Aqui em baixo, o Código de Trânsito veio depois de muitas mortes. Assim mesmo, Fernando Henrique ainda derrubou a obrigatoriedade do airbag, norma conquistada num árduo debate no Congresso. O pior é que derrubou usando um argumento de estremecer seu apertado chapéu de doutor honoris causa: o airbag obrigatório seria implantado também nos carros velhos.
Para dizer isso, acho que nem chegou a ler o texto da lei, senão sairia em busca de algo melhor. Tanto o presidente quanto os setores mais ricos do Brasil ao vencerem as velocidades e desafiarem o mau tempo esquecem de que são vulneráveis como qualquer ser humano. Essa sensação adolescente de invulnerabilidade talvez seja um dado cultural, um ponto de partida para entender como levamos para os ares nossos erros aqui na terra.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.