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Levamos para os ares nossos erros aqui na terra
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Há uns dez anos, quase não
se viam helicópteros. Mesmo
na lagoa Rodrigo de Freitas
era possível caminhar ou correr sem sentir aquele vento
quente na nuca. Agora, tudo
mudou. É preciso parar a bicicleta, segurar o chapéu e engolir um pouco de poeira. Turistas e executivos não param de
decolar e aterrissar, enquanto
aqui embaixo tudo voa com
eles.
Na medida em que o trânsito
vai ficando mais complicado,
o problema da velocidade está
sendo resolvido pelo alto e por
cima das camadas sociais condenadas ao ônibus, ao metrô
ou mesmo ao carro particular.
Do meu quartinho na baía
da Jacuacanga, em Angra dos
Reis, eu os vejo passar nos feriados. Penso em Ulysses Guimarães e Severo Gomes e suas
mulheres, que desapareceram
nessas águas. Nunca me esquecerei porque era repórter e fui
chamado para reconhecer o
corpo de Severo, de quem sempre gostei muito.
O último desastre aconteceu
algumas horas depois da minha partida. Se estivesse lá,
sentado na velha cadeira de
praia da varanda, talvez tivesse presenciado a queda, o que
deve ser uma das coisas mais
terríveis para se presenciar naquela linda paisagem.
Quem sai de barco, sabe que
tempestades sempre caem por
ali. No verão, os helicópteros se
deslocam para onde há beleza
e paz. O problema é que a beleza e paz de Angra repousam
num clima instável, sujeito a
trovoadas. O mar não está para helicópteros.
Tenho um amigo que é piloto
particular de um bambambã.
Sua missão é voar em qualquer
tempestade. Seu patrão não se
contenta em ter uma capacidade de se deslocar mais velozmente, quer um instrumento
que o coloque acima das próprias condições atmosféricas.
Se os pilotos não criarem um
código próprio, no qual sejam
capazes de dar a última palavra a partir de sua capacidade
técnica e experiência de vôo, o
helicóptero, espécie em expansão, pode virar espécie em extinção no Brasil.
Foi assim que li aquele pequeno escândalo com grã-finos que viajavam para Angra.
Insatisfeito com o piloto, um
dos passageiros simplesmente
"pisou no freio". Na verdade,
pisou violentamente num pedal que lhe parecia o freio, naturalmente a partir de seu universo de automobilista.
Ele se sentia num táxi. Pensou que pisando no freio, o veículo estacionaria e poderiam
então resolver sua divergência.
Infelizmente, é um erro comum. Muita gente tentou entender a revolução alemã com
a lógica da russa, outros pretendem falar um idioma estrangeiro com as regras do seu
próprio idioma.
Numa entrevista para a TV,
o passageiro disse: o piloto é
apenas um motorista do ar, logo, tem de acatar minha opinião. Senti aí, ainda estava em
Angra, vendo helicópteros cruzando a baía, um certo medo
desse encontro das classes dominantes brasileiras com um
veículo ainda recente no seu
cotidiano.
Elas tendem a ser autoritárias, o que aumenta a insegurança no ar. O piloto detém
um volume de informações sobre seu veículo muito maior do
que o passageiro, o que não
acontece com o carro, em que
os saberes de passageiro e motorista, às vezes, se equivalem.
Além disso, elas são pouco
educadas como consumidoras
e não fazem as exigências necessárias quando contratam
um vôo. Desconhecem os critérios de licenciamento, não se
interessam em checar os documentos. Montam no aparelho
e ordenam: "Toca pelo litoral,
passando por aquelas montanhas".
Sonho com a possibilidade
de também oferecer outras alternativas aos que querem se
deslocar mais rápido do que os
respeitadores da lei da gravidade. O dirigível é uma delas.
Uma cidade como o Rio de Janeiro poderia explorar dirigíveis, mais do que helicópteros,
para mostrar suas belezas aos
turistas.
Enquanto essa discussão não
se inaugura, não posso me
contentar em segurar o chapéu
e parar minha bicicleta para
que decolem ou aterrissem. O
helicóptero chegou na frente
do debate sobre seu uso. Por
que não utilizar o desastre fatal e o quiproquó com os
grã-finos para nos aprofundarmos no tema, fixarmos algumas regras elementares que
sejam bastante conhecidas?
Não há chance de fazer isso
no Congresso. A pauta está fechada para o período, e comissões não trabalham nesta época. Resta a mídia convencional e a Internet -essa última,
mais restritiva, mas em compensação mais dinâmica e democrática.
O fato de os helicópteros terem mergulhado no mar reduziu a dimensão da tragédia.
No entanto, sua presença é cada vez mais forte no próprio
espaço urbano. Como eles não
caem para cima, não vale o argumento de que se trata de um
problema de minoria, isto é,
apenas dos que têm poder
aquisitivo para ter ou alugar
um helicóptero.
Cada vez que me enredo no
seu vento forte, ondulando as
águas da Lagoa, tenho uma
preocupação redobrada com a
segurança. Ninguém gostaria
de vê-los caindo, ainda mais
em cima da própria bicicleta,
da moça que vende cocos ou
das crianças de velocípede.
O helicóptero pode ser um
grande avanço na vida das
pessoas. Com o tempo, talvez
os preços caiam e de certa forma o uso se amplie. Mas é impossível introduzir uma nova
técnica de transporte no Brasil
sem uma reflexão permanente
sobre ela.
Aqui em baixo, o Código de
Trânsito veio depois de muitas
mortes. Assim mesmo, Fernando Henrique ainda derrubou a
obrigatoriedade do airbag,
norma conquistada num árduo debate no Congresso. O
pior é que derrubou usando
um argumento de estremecer
seu apertado chapéu de doutor
honoris causa: o airbag obrigatório seria implantado também nos carros velhos.
Para dizer isso, acho que
nem chegou a ler o texto da lei,
senão sairia em busca de algo
melhor. Tanto o presidente
quanto os setores mais ricos do
Brasil ao vencerem as velocidades e desafiarem o mau
tempo esquecem de que são
vulneráveis como qualquer ser
humano. Essa sensação adolescente de invulnerabilidade
talvez seja um dado cultural,
um ponto de partida para entender como levamos para os
ares nossos erros aqui na terra.
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